Maria João Matos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria João Matos
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Maria João Matos, professora de Português do ensino secundário, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se a seguinte frase está correcta: «A amostra é incidida por um feixe de energia electromagnética.» Caso não esteja («incidida por» não me soa muito bem), qual seria a forma correcta de o dizer?

Muito obrigada.

Resposta:

A frase não está correcta. O verbo incidir utiliza-se só na voz activa: «Um feixe de energia electromagnética incide sobre a amostra.» Querendo utilizar a forma passiva, terá de substituir o verbo por um sinónimo. Por exemplo: «A amostra é atingida por um feixe de energia…» 

O verbo incidir pede uma preposição («incidir sobre», «incidir em»), o que não acontece com o verbo atingir: «incide sobre a amostra»/«atinge a amostra». É essa preposição (sobre) que não permite a forma passiva da frase, pois, se o verbo se constrói com preposição na forma activa, ela não pode desaparecer na passiva. Esse problema já não surge com atingir, um verbo transitivo directo. 

Outra construção possível é com o verbo expor: «A amostra é [ou está] exposta a um feixe de energia electromagnética.»

Pergunta:

Tenho dificuldades em distinguir, na divisão e classificação de orações, quando aparece um que a iniciar uma oração, se é uma oração subordinada integrante ou se é uma oração subordinada final. Como é que se distingue?

Gostaria de conhecer a vossa opinião sobre o assunto.

Muito obrigado.

Resposta:

A oração subordinada integrante inicia-se por que ou se. Também se chama completiva porque completa o sentido da oração subordinante, sem a qual o seu sentido ficaria incompleto.

Exemplo: «Disse-te que viesses cedo».

Nesta frase complexa, a oração subordinante é «disse-te» e ficaria incompleta sem a subordinada «que viesses cedo». De facto, o verbo dizer pede complemento directo (quem diz, diz alguma coisa) e a oração integrante, «que viesses cedo», é o complemento directo da oração subordinante.

A oração subordinada final inicia-se por «para que» ou «a fim de que».

Exemplo: «Não basta a tua vontade para que tudo se arranje.»

Neste frase complexa, a oração subordinante é «Não basta a tua vontade». Esta oração só por si é sintacticamente completa, a subordinada «para que tudo se arranje» apenas acrescenta uma circunstância, que indica a finalidade da oração subordinante — é como se desempenhasse a função de complemento circunstancial de fim.

Pode acontecer — sobretudo nos autores clássicos — uma oração final iniciada por que, mas este é sempre substituível por «para que».

Exemplo:

«Tu que as gentes da terra toda enfreias que (para que,) não passem o termo limitado» (Os Lusíadas, de Luís de Camões).

Em resumo, sempre que a oração se inicie por para que ou a fim de que, ela é certamente final. Se a oração subordinada se iniciar ...

Pergunta:

O verbo arriscar, quando usado pronominalmente, rege a preposição a? Ou seja, podemos considerar correctas as seguintes construções:

— «arriscamos, pois, dizer que este entendimento é consensual»;

— «arriscamo-nos, pois, a dizer que este entendimento é consensual»?

Sendo arriscar(-se) transitivo, na primeira frase o complemento directo é «dizer»; já na segunda frase o complemento directo é o pronome pessoal, razão por que se entende, depois, a necessidade da preposição. Estarei a fazer o raciocínio correcto?

Resposta:

O verbo arriscar é transitivo directo e, na primeira frase, tem como complemento directo a expressão «dizer que este entendimento é consensual». O complemento directo inclui a oração subordinada completiva «que este entendimento é consensual».

Arriscar-se, com o sentido de «atrever-se», é um verbo pronominal, em que se é um pronome pessoal que faz parte integrante do verbo, pelo que não desempenha qualquer função sintáctica. O verbo rege a preposição a, logo, «a dizer que este entendimento é consensual» é um complemento preposicionado, que inclui igualmente a oração subordinada completiva «que este entendimento é consensual».

Pergunta:

Gostaria de saber qual a tradução da frase: «échelas usted más blandas» (Cena II), da peça de teatro Falar Verdade a Mentir, de Almeida Garrett.

Resposta:

Trata-se de uma expressão clássica da língua castelhana, que tem os seguintes significados: «no me lo poga usted tan difícil», «deme usted facilidades», «déjeme un camino abierto para que le crea», «no me cuente mentiras tan evidentes».

No contexto referido, parece ser a última expressão a que melhor se adapta ao sentido do texto. Joaquina procura desculpar Duarte pelo seu comportamento (porque é morgado e de raça quase castelhana), e José Félix responde, mostrando que se apercebe disso:

«Entendo, entendo… échelas usted mas blandas...», «Entendo, entendo… não me conte mentiras tão evidentes», ou, por outras palavras, «Entendo, entendo… pare de mentir à descarada».

Nota: Agradecemos a colaboração do professor Manuel de Santiago y González.

Pergunta:

A propósito da resposta muito gentilmente dada pela professora Maria João Matos, gostaria de saber ainda se, no caso da frase «Ele se operou ao apêndice», em que se considerou o pronome se como passivo, houver uma troca de pronome pessoal para, por exemplo, «Nós nos operamos ao apêndice», esse nos também deve ser classificado como nos passivo. A classificação sintática seria, então: nos, pronome apassivador?

Resposta:

A classificação está correcta. No seu Dicionário de Questões Vernáculas, Napoleão Mendes de Almeida, na entrada se, confirma: «Embora raramente, as formas oblíquas me, te, nos e vos exercem também função apassivante.»

A passiva com se ocorre com mais frequência quando o sujeito é inanimado, em construções que acontecem só na 3ª. pessoa, e com as quais se emprega apenas a forma se do pronome pessoal. Mas também pode ocorrer quando o sujeito é representado por pessoa que não exerce a acção do verbo, ou seja, quando o sujeito é passivo, como acontece com o exemplo em apreço.