Maria Eugénia Alves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria Eugénia Alves
Maria Eugénia Alves
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Professora portuguesa, licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com tese de mestrado sobre Eugénio de Andrade, na Universidade de Toulouse; classificadora das provas de exame nacional de Português, no Ensino Secundário. 

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Nas palavras céu e desapareceu, a rima é toante ou consoante?

Resposta:

   Na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, pp. 691-699, 2ª ed., faz-se a distinção entre as variedades de rima.

   Quando a correspondência dos sons é completa, a rima diz-se soante ou consoante ou, simplesmente, consonância: -ora (amoranora). A partir da vogal tónica igualam-se todos os fonemas, vogais e consoantes.

   Se há conformidade apenas da vogal tónica, ou das vogais a partir da tónica, a rima diz-se toante, assonante ou assonância: i - o (amigo, filho). Apresenta uma identidade de vogais a partir da vogal tónica.

   As palavras da consulente, céu e desapareceu, enquadram-se no exemplo de Cunha e Cintra de rima toante, em que nem sempre há identidade absoluta entre os sons dispostos em rima. É um dos casos de rima imperfeita, consagrados pelo uso, da vogal acentuada e aberta com fechada: 

«Quem disse à estrela o caminho

Que ela há-de seguir no céu?

A fabricar o seu ninho

Como é que a ave aprendeu

Pergunta:

Tenho uma dúvida sobre as palavras neófilo e neófito. Me parece ser muito sutil a diferença, mas ainda persiste a dúvida. Poderiam esclarecer melhor? 

Resposta:

No Dicionário Aurélio, encontramos a definição de neófito: «(do grego neóphytos, pelo latim neophytu) Na Igreja primitiva, indivíduo recentemente convertido o cristianismo; aquele que recebeu ou acabou de receber o batismo; noviço; indivíduo admitido há pouco em uma corporação; principiante, novato: É neófito em filologia»

É nesse sentido que Fernando Pessoa acaba o poema Iniciação, em que alude ao cerimonial do iniciado no ritual esotérico do autoconhecimento, com o verso «Neófito, não há morte.»

Dicionário Houaiss ainda acrescenta: «Aquele que está num local pela primeira vez O banho dos neófitos ao passarem de navio pela linha do Equador.; pessoa recém-admitida numa empresa. [do latim neophytus, -i recém-convertido; do grego neóphytos, on, plantado há pouco, implantado recentemente (na alma)]. 

Quanto a neófilo (neo- + -filo), o sentido é bastante diferente e o mesmo Dicionário Houaiss define «Que ou aquele que denota neofilia¹; admirador ou adepto do novo.» 

¹ Amor à novidade, às teorias revolucionárias e concepções culturais originais, aos modos de expressão inovadores.

Pergunta:

Nenhum dicionário regista o termo “destitutivo”. Será um erro, um neologismo ou uma falha dos dicionários? 

Muito obrigado.

Resposta:

Destitutivo não aparece ainda dicionarizado, embora esteja a ser frequentemente usado quer oralmente, quer na escrita, sobretudo na imprensa, por exemplo, aqui ou aqui, pelo que se considera um neologismo.

O adjetivo, que significa com poder de destituir algo ou alguém, encontra-se bem formado, pois existe uma família de palavras que o consolida: destituir, destituído, destituição

Não se trata de uma falha dos dicionários¹: a entrada far-se-á em breve, pois o uso durante um certo período de tempo assim o determina – tal como já aconteceu, entre outros, com os adjetivos constitutivo («que tem poder de constituir),  destrutivo («que destrói») ou restitutivo («que é passível de restituição, de devolução».

 

¹ Quando é detetado um novo termo, os lexicógrafos encarregam-se da sua catalogação, bem como do seu significado e do contexto em que é proferido. Quanto maior for o número de vezes usado, mais probabilidades tem de ser dicionarizado. Este período de uso antes da entrada no dicionário é indeterminado, mas comporta,...

Pergunta:

A propósito de um poema de Afonso Lopes Vieira, trabalhado com os alunos, gostaria que me esclarecessem relativamente à divisão de sílabas métricas do verso «Ó que lindo, os navios», se a vírgula é impeditiva da junção das vogais.

Obrigada.

Resposta:

Não cremos que a vírgula instale uma rutura na junção destas vogais átonas, uma vez que, ao pronunciá-las, as juntamos numa só sílaba e esse é o fator que determina a divisão da métrica. Fundem-se conforme a pronúncia corrente (o que constitui a sinalefa)É a fonética que define o critério da contagem das sílabas métricas, a que se chama escansão do verso.

O verso tem, assim, 6 sílabas métricas «Ó /que / lin /do, os/ na /vi / os». 

Para haver a ocorrência de hiato, tinham de estar presentes duas vogais tónicas lado a lado, não podendo haver contração das duas, ou seja, mantêm-se em sílabas independentes, ainda que uma das sílabas tónicas enfraqueça. O hiato diminui a fluidez do verso, razão que leva os autores a evitá-lo (Ex.: di/rá / ao ).

Exemplificamos com um soneto de Camões, de versos decassílabos, o que dissemos acima. Veja-se o 1º verso, com vírgula  a separar as  vogais átonas a e a e que as elide numa sílaba métrica: De/ quan/ tas/ gra/ ças/ ti/ nha, a/ Na/ tu/ re/ za

As duas sílabas gramaticais /nha, a/ podem ser pronunciadas numa única emissão de som e a vírgula não o impede, nem as separa como nas sílabas gramaticais.

De quantas graças tinh...

Pergunta:

Tenho uma pergunta em relação ao uso da expressão «sei lá!» Por que razão tem esta o valor negativo de «não sei» quando não comporta qualquer marcador de negação?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

Há palavras que ganham valores semânticos que contrariam, por vezes, a sua vocação primária. É o caso do advérbio que, na frase citada pela consulente «sei lá!», adquire um valor negativo, distante da sua primeira aceção, isto é, marcador de lugar.

João Costa, no seu estudo sobre O Advérbio em Português Europeu, p. 75, realça o valor negativo do advérbio lá:

«O advérbio pode denotar polaridade negativa em frases exclamativas como:

a. Eu lá tenho vontade de ir trabalhar! (= Eu não tenho vontade de ir trabalhar)

b. Ele lá gosta disso! (= Ele não gosta disso)

c. O Pedro lá pensa nessas coisas! (= O Pedro não pensa nessas coisas)» 

No entanto, este advérbio não substitui na íntegra o advérbio de polaridade não, pois

 – não se pode usá-lo para respostas a interrogativas totais: «Queres pão? Não / *lá¹»

 – ou «pode co-ocorrer com o advérbio de polaridade não, transformando uma frase negativa em positiva: Eu lá não te deixava entrar! (= Eu deixo-te entrar)»

Em conclusão, «Sei lá!» enquadra-se neste âmbito do valor negativo de , significando, como diz a consulente, «Não sei».