Filipe Carvalho - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Filipe Carvalho
Filipe Carvalho
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Mestre em Teoria da Literatura (2003) e licenciado em Estudos Portugueses (1993). Professor de língua portuguesa, latina, francesa e inglesa em várias escolas oficiais, profissionais e particulares dos ensinos básico, secundário e universitário. Formador de Formadores (1994), organizou e ministrou vários cursos, tanto em regime presencial, como semipresencial (B-learning) e à distância (E-learning). Supervisor de formação e responsável por plataforma contendo 80 cursos profissionais.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A minha questão está relacionada com a escrita literária e a utilização de incisos nas diferentes perspetivas do texto. A dúvida surge sempre que sinto que faz sentido colocar ações, ou pensamentos, de uma personagem diferente da que está a usar a palavra. Quando o texto está escrito na perspetiva da primeira pessoa, porque tudo é visto do seu ponto de vista, terá de ser assim; no entanto, quando o texto está escrito na terceira pessoa, não é tão linear. Existem regras precisas quanto ao uso dos incisos na escrita literária? Por exemplo, é regra que os incisos digam respeito apenas à personagem que tem a palavra?

Resposta:

Os incisos não dizem respeito só à escrita literária1. São muito usados, por exemplo, em textos concernentes à advocacia. As regras inerentes ao enunciado literário são a lógica e a pertinência da presença do inciso. Este elemento é «uma frase ou oração encravada que interrompe o sentido de outra» (segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Para que tal aconteça e respeite a coerência textual, o seu emprego deve ser racional. Tem de se ter em conta todo o contexto.

O inciso pode surgir como uma ideia de alguém que não está a usar da palavra. Por exemplo, na frase: «A mulher, dizem, tem um sentimento único em relação aos filhos.» Este enunciado está escrito na terceira pessoa, é atualizado por um emissor, mas o inciso demonstra a interferência de outras pessoas que não estão a participar no ato de fala. Dá mesmo a sensação de que o falante não está profundamente convicto do que diz e, portanto, tem a necessidade de apresentar a opinião de outros. Bastaria ter afirmado: «A mulher tem um sentimento único em relação aos filhos». Assim, julgamos que a pertinência será a regra que deve nortear a utilização dos incisos em literatura.   

1 O termo inciso é usado como termo da descrição gramatical como uma «frase geralmente curta que se encaixa noutra mais longa para exprimir uma espécie de parêntesis ou para indicar a personagem que está a falar» (inciso2 no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). O Dicionário Houaiss (1.ª edição, 2001) também define o termo, juntando-lhe exemplos (sublinhado nosso): «diz-se de ou frase ou locução que se intercala entre d...

Pergunta:

Qual é a figura de estilo presente em «sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei», do poema Reticências, do heterónimo Álvaro de Campos?

Obrigada.

Resposta:

Identificar uma figura de estilo é resultado da interpretação subjetiva daquele que está a analisar um texto literário. Evidentemente que as gramáticas apresentam as características que cada recurso possui, mas a sua compreensão pode ser variada. O verso que apresenta é um exemplo do que se disse. O sujeito poético sorri de «coisa-nenhuma»; qualquer coisa é alguma coisa; alguma coisa é a oposição de coisa nenhuma; então, poder-se-á falar de antítese. Mas “coisa” (alguma coisa) que é «coisa-nenhuma» ao mesmo tempo remete para um pensamento ilógico. Será, também, pertinente falar-se do recurso que tem o nome de paradoxo. O seguimento «que serei» reforça tanto a ideia de antítese como de paradoxo (serei coisa-nenhuma é algo que está em oposição, mas também é uma situação ilógica).

Pergunta:

Qual é o plural de guarda-noturno, guarda-florestal e guarda-fiscal? Guarda é um substantivo, ou provém do verbo guardar?

Obrigada.

Resposta:

O plural de guarda-noturno é guardas-noturnos. Neste caso, guarda é um substantivo, seguido do adjetivo noturno. O plural de guarda-florestal é guardas-florestais, pelo mesmo motivo. O plural de guarda-fiscal é guardas-fiscais.

No entanto, se guarda tiver a função de verbo, o segundo termo do composto deve ser obrigatoriamente um substantivo e, neste caso, só o nome irá para plural. Por exemplo, guarda-roupas.

Pergunta:

Conheço o significado de oblato(a), no sentido de «devoção/entrega sacra, pessoal, a uma entidade divina»; aliás, é termo muito comum no caso de religiosas, pelo menos na religião cristã. Assim, foi com surpresa que encontrei aquele vocábulo no sentido de «oblongo», conforme consta de um livro recente (nov. de 2015), Explicar o Mundo, de Steven Weinberg, da Editora Marcador, tradução de Francisco Silva Pereira. Não se tratará, certamente, de uma gralha tipográfica, pois aparece várias vezes no texto, sempre que se refere à não esfericidade da Terra (maior raio equatorial, do que a outras latitudes), e portanto com o sentido de esferoide alongado. Será que, presentemente, esta configuração física de um sólido esferoide também se chama oblata(o)? Pelo menos não consta de todos os dicionários que consultei; o que, contudo, não excluo ser um novo significado; muito recente.

Agradecido pela vossa sempre douta disponibilidade de esclarecimento.

Resposta:

De facto, a esmagadora maioria dos dicionários confere ao termo o significado de componente religiosa que o consulente sempre conheceu. Por exemplo, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa apresenta oblato como um «indivíduo oferecido por seus pais a um convento para serviço de Deus; leigo que se oferecia para serviço de uma comunidade religiosa; oferecido a Deus».

Porém, o Dicionário Caldas Aulete, para além do significado religioso, apresenta o seguinte: «Diz-se de qualquer coisa quase esférica, achatada nos polos.» Este vocábulo, em referência à forma de um volume, tem atestação mais recente, por exemplo, no Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001), que atribui o primeiro registo dessa aceção à edição de 1975 do Aurélio e o define assim:

«adjetivo 1 achatado nos pólos; 2 Rubrica: morfologia botânica. que é semelhante a uma esfera; esferóide.»

Será, portanto, um termo já aceite pela comunidade linguística, pois já está dicionarizado.

Pergunta:

Gostaria de saber se existe protegei-nos.

Na oração de São Miguel Arcanjo, vi esta conjugação e gostaria de ter certeza de que está correta.

Resposta:

Sim, a forma verbal existe. Trata-se do imperativo do verbo proteger. A expressão protegei-nos é um apelo que emissores fazem no sentido de algo, alguém ou um grupo (pode ser singular com tratamento formal ou plural) os proteger. A partícula (pronome pessoal) nos tem a função sintática de complemento direto.