Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Corre pelas televisões [portuguesas] um anúncio do BCP, onde o apresentador Jorge Gabriel dialoga com o barbeiro, o actor João d´Ávila, e este lhe pergunta:

— Que recomendas-me, Jorge?

A minha dúvida é a seguinte: «Que recomendas-me, Jorge?», ou, antes, «Que me recomendas, Jorge?»

Muito obrigada.

Resposta:

A frase apresentada pelo consulente não é a que se ouve realmente no anúncio em causa. A verdadeira frase é «Tu recomendas-me, Jorge?», que está correcta, subentendendo-se um complemento directo («Tu recomendas-me que aplique o meu dinheiro nesse banco?»).

Observe-se, porém, que a frase referida pela consulente («Que recomendas-me, Jorge?») está incorrecta. Os pronomes que exercem a função de complemento (no caso, o pronome lhe é o complemento indirecto do predicado recomendas) colocam-se antes do verbo nas orações relativas e nas interrogativas iniciadas por um elemento interrogativo (pronome, advérbio ou quantificador). No caso, temos uma oração relativa interrogativa, pelo que a frase correcta é «Que me recomendas, Jorge?».

Se não existisse esse elemento, o pronome colocar-se-ia depois do verbo, como se verifica na frase utilizada no anúncio («Tu recomendas-me, Jorge?»). Exemplos:

 Frase interrogativa sem elemento interrogativo
(pronome depois do verbo)
 Frase interrogativa com elemento interrogativo
(pronome antes do verbo)
 1. Recomendas-me esse investimento?
2. Vais-te embora?
3. Respondeste-lhe assim?
4. Encontramo-nos à porta do cinema?
5. Os alunos portaram-se bem? 
 1. Que investimento me recomendas?
2. Quando é que te vais embora?
3. O que lhe respondeste?
4. Onde é que nos encontramos?
5. Como se portaram os alunos?

 

Pergunta:

Como traduzir accountability, termo cada vez mais comum no domínio das ciências políticas, sociais e da gíria da gestão?

Resposta:

O Oxford Portuguese Minidictionary indica que accountability é o mesmo que responsabilidade. Mas surge a questão: se em inglês existe responsability, que é também «responsabilidade», então há diferença entre accountability e responsability? E se há diferença, como transmiti-la em português?

O que se passa com accountability é que o seu radical, account, anda perto de expressões portuguesas como «ter em conta», «dar conta», «prestar contas». Estas expressões, sobretudo a última, reconduzem-nos à palavra responsabilidade, por razões de sinonímia. Deste modo, parece-me não haver uma unidade lexical portuguesa que consiga exprimir o matiz específico de accountability por oposição a responsability, pelo que ambas as palavras terão de ser traduzidas por responsabilidade.

Pergunta:

O correto é usar:

«Fulano, + que 10, é 20!» ou «Fulano, + que 10, são 20!», ou «fulano, é + que 10, é 20!» ou «fulano, é + que 10, são 20!»?

Vou lançar uma campanha de marketing para comemorar os 20 anos da agência de viagens onde trabalho.

Imaginei a frase

«+ que 10, é 20!

, 20 anos viajando com você.»

Mas surgiram as dúvidas acima e estou com medo de imprimir e divulgar na Internet algo errado. O que o senhor me aconselha?

Agradeço, antecipadamente sua atenção.

Resposta:

Na frase em questão os numerais dez e vinte, representados por algarismos, pressupõem o plural anos, sendo, por isso, legítima a paráfrase «mais que 10 anos são 20 anos». Por conseguinte, recomendo o emprego do verbo no plural. Esclareça-se também que com o sujeito formado por expressões como mais de (ou mais que), menos de, cerca de e um substantivo no plural, o verbo vai para o plural; dir-se-á, portanto, «mais que 10 são 20».

Dito isto, admito que da parte do consulente haja a intenção de fazer um jogo com a possibilidade de os numerais serem usados sozinhos, como substantivos comuns. Nesse caso, aceito o singular em «mais que 10 é 20», que é como quem diz: «mais que o número 10 é o número 20».

Uma observação final: se sujeito, verbo copulativo (ser) e predicativo do sujeito são contíguos, não se pode usar vírgula, porque se convenciona não separar assim os constituintes com essas funções. Por conseguinte, entre «mais que 10» e «é» não se põe vírgula, porque a primeira expressão é sujeito ou predicativo do sujeito (trata-se de uma frase identificacional, estrutura de análise sempre controversa).

Pergunta:

Li uma obra de 1809 de propaganda antinapoleónica (Heróis de Faro e Olhão – Drama Histórico em Três Actos) e aparecem aí dois termos sobre os quais tenho algumas dúvidas: Futre e Frazão. O primeiro é alcunha dos franceses; o segundo, dos portugueses (por vezes os termos aparecem no plural). Provavelmente trata-se de termos usuais na época, ou pelo menos conhecidos na gíria antinapoleónica.

Sobre futre vi num dicionário que é sinónimo de «pessoa desprezível», bandalho, farroupilha... (Ai, o Paulo Futre, se soubesse o que o seu nome quer dizer!). Da mesma raiz provirá o termo futricar, isto é, «trapacear», «estragar», «mexericar». Parecem provir do termo francês foutrer, «pôr», «meter», «cravar», mas também... «foder», o que concorda, por sua vez, com a sua etimologia proveniente do latim futuere, «fornicar», no sentido de «penetrar» (e não no de «ser penetrado»).

A minha dúvida principal prende-se com o apodo de Frazão, que nem pelo contexto do termo consigo perceber muito bem o que o autor quer dizer. Percebe-se que visa qualificar a bravura e o patriotismo dos portugueses, mas pergunto: donde virá o termo?

Obrigado desde já pelo esclarecimento.

Resposta:

Basear-me-ei na informação disponível no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado. Assim:

Futre

«Do francês Foutre.» — diz Machado laconicamente, deixando entender que a maiúscula indica nome próprio francês. Não sendo impossível, é estranho que um apelido francês tenha a  mesma forma que um verbo com valor obsceno (refira-se já agora que o verbo se escreve e pronuncia foutre e não *foutrer). No entanto, o Dicionário Houaiss confirma a origem e os significados atribuídos pelo consulente ao substantivo comum futre (do qual é verdade que deriva futricar). Tendo em conta que Futre é a alcunha de uma das personagens da peça em questão, sugiro isso mesmo, que o apelido começou como alcunha, talvez porque no praguejar dos soldados napoleónicos fosse frequente o verbo foutre. É de lembrar o típico je m´en fous!, «quero lá saber!», em que fous é a primeira pessoa do singular do presente do indicativo de foutre.

 

Frazão

É outro nome acerca do qual há mais dúvidas do que certezas. Machado considera-o de origem obscura, mas sugere uma etimologia híbrida: do árabe faras, «cavalo» e aumentativo românico -ão. As formas medievais Farazon e Farazun apontam para uma relação com os arabismos alfaraz, «rápido, ligeiro (em relação a cavalo ou a cavaleiro)», e Alfarazes (Guarda, Portugal), ambos criados com base no referido termo árabe.

Pergunta:

Segundo a informação que consegui obter (não sei se correcta), bretão referia-se a algo ou alguém da Grã-Bretanha. Agora, a palavra que se usa é britânico. Qual a sua origem? Resultará de british? Continua a ser correcto usar bretão com o referido sentido? Em caso afirmativo (das duas perguntas anteriores), usar bretão não seria uma atitude de «defesa da língua»?

Obrigado.

 

Resposta:

Britânico designa o habitante da actual Grã-Bretanha ou do actual Reino Unido (Grã-Bretanha com Irlanda do Norte) e tem origem no latim britannicus, a, um. Não há relação etimológica directa com british nem se trata de estrangeirismo de que a língua tenha de se defender.
 
Quanto a bretão, é hoje usado principalmente no sentido de «habitante ou natural da Bretanha (região francesa)». Também pode ser sinónimo de britânico, sobretudo na linguagem literária, mas aplica-se normalmente ao habitante da antiga Britânia celto-romana. Propor o uso de bretão em vez de britânico é, portanto, um anacronismo.