Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Relativamente a «posse ilegal de arma», tenho uma questão quanto à sua resposta à dúvida anterior, pois considero que tanto a posse é ilegal, como a própria arma é ilegal. Não existe posse legal de armas ilegais e, portanto, parece-me que as duas opções colocadas pelo comentário anterior estão correctas. Serei eu que estou enganada?

Resposta:

O conceito de posse pode trocar as voltas do raciocínio da consulente.

Vejamos o seguinte:

a) as armas podem ser legais ou ilegais;

b) a posse pode ser legal ou ilegal.

Admitindo a outra formulação que não a de «posse ilegal de arma», isto é, «posse de arma ilegal», é possível detectar ambiguidade nesta expressão:

a) ilegal modifica o núcleo «posse» da expressão «posse de arma» e é o mesmo que «posse ilegal de arma»;

b) é a palavra arma que é modificada por ilegal, pelo que a expressão significa «posse de uma arma que é ilegal».

Em princípio, a expressão costuma ser «posse ilegal de arma» e não «posse de arma ilegal», porque a situação mais em foco para as autoridades e para a comunicação social é a de uso não permitido de armas. Com efeito, nas nossas sociedades, a posse é que costuma ser ilegal, porque a acção policial se exerce normalmente sobre posse ou uso de arma, sem a necessária licença de porte de arma.

Contudo, noutro contexto, por exemplo, militar, pode acontecer que um país viole convenções internacionais que identificam certas armas como nefastas para a humanidade: nesse caso, esse país encontra-se na posse de armas ilegais, o que se traduz paradoxalmente por uma situação de legalidade interna (pode-se argumentar as armas são usadas para a segurança nacional), mas de ilegalidade no plano internacional (a posse dessas armas não é aceite por outros países). Outra situação possível é a de as autoridades apreenderem armas ilegais a certos grupos de indivíduos que agem ilegalmente. Também aqui temos o caso paradoxal de as autoridades se encontrem na posse de armas por definição ilegais;...

Pergunta:

Encontro-me a redigir um relatório de estágio baseado na produção de castanha. Surgiu-me uma dúvida quanto ao adjectivo referente à castanha, como por exemplo «produção apícola» para o mel, ou «produção frutícola».

Já encontrei em vários sítios, escritos por professores universitários, as formas "castanhícola" e "castaneícola". No entanto, nos dicionários que consultei, nenhuma das formas aparece.

Gostaria que me esclarecessem sobre qual delas é a correcta, ou, porventura, se tal vocábulo não existe na língua portuguesa.

Desde já, muito obrigado e parabéns pelo trabalho!

Resposta:

Os termos que encontrou «em vários sítios» não aparecem nos dicionários consultados, nos quais  adjectivo referente a castanhas é castanhoso. Regista-o, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa 2008, da Porto Editora, e quer dizer «que tem castanhas ou castanhais».

Contudo, o sufixo átono -cola é actualmente produtivo e pode aparecer associado com palavras de diferentes origens, como comenta o Dicionário Houaiss:

«[-cola] pospositivo, do eruditismo lat[ino] –cola, do v[erbo] lat[ino] colo,is,ŭi,cultum,ĕre, 'cultivar, cuidar; habitar; tratar bem; prosperar algo'; o padrão lat[ino] aparece em port[uguês] no Renascimento e vem-se divulgando, sobretudo a partir do sXIX, já com antepositivos cultos lat[inos], já gr[egos], já de outras orig[ens], inclusive vern[áculos], caso em que sua qualidade internacional fica comprometida (p. ex., batatícola/bataticultor/bataticultura, de 1988) [...].»

Parece, portanto, que há uma certa margem de liberdade na construção de termos sufixados com -cola. Apesar disso, diremos que a forma castanhícola, «relativo à produção de castanha», é aceitável, mas mais consistente do ponto de vista etimológico é castaneícola, porque vai buscar castene-, radical da forma latina castanea, origem do português castanha, juntando-lhe a vogal de ligação -i-. A sequência -eícola é possível, como se pode ver pelo caso de oleícola, formado por ole-, radical de oleum, «azeite», pela vogal de ligação -i- e pelo sufixo -cola.

De qualquer modo, estamos perante neologismos de uso...

Pergunta:

Gostaria de saber se há alguma expressão correspondente a «Catch the wheel that breaks a butterfly» em português. A expressão inglesa refere-se a dedicar um esforço extremo ou exagerado a algo insignificante ou inútil. Wheel, nesta expressão, refere-se à antiga forma de tortura onde se partiam os ossos da vítima com um ferro, com esta amarrada a uma roda.

Resposta:

A expressão em causa faz parte da letra da peça intitulada Falling Down, escrita por Noel Gallagher, membro do grupo musical Oasis. A frase faz alusão a uma outra, «who breaks a butterfly upon a wheel?», da autoria do poeta inglês Alexander Pope (1688-1744) e que significa literalmente «quem parte uma borboleta sobre a roda de tortura?». Esta expressão aplica-se realmente a uma situação em que os meios, o esforço ou o empenho redundaram num resultado pouco importante. 

Não vejo o exacto equivalente desta expressão em português, mas sugiro a frase «a montanha pariu um rato», que é uma elaboração de «parto da montanha», expressão registada e comentada por Guilherme Augusto Simões, no seu Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Lisboa, Edições D. Quixote, 1993):1

«Parto da montanha – Tudo quanto motiva uma decepção no resultado final quando se aguardam grandes êxitos (relativo à célebre frase latina "parturiunt montes; nascetur ridicul[u]s mus" – a montanha pariu um rato; mas a frase latina mais conhecida sobre o mesmo assunto é "mons parturiens".»

Esta não é certamente a melhor tradução da expressão inglesa. Deixo, portanto, ao consulente a criativa e espinhosa tarefa de encontrar a expressão portuguesa que melhor se adapte à mensagem do poema.

1 Um consulente (José Afonso, Angra do Heroísmo, Açores) sugere outra express...

Pergunta:

Em Mafra usam este termo (que não sei bem como se escreve) significando uma prendinha, um agrado. Ex.: «Este bifinho é um requeijanote para o meu marido.»

Será que existe este termo popular?

Muito obrigada, desde já, pela vossa ajuda.

Resposta:

Existe, porque, como diz, é usado. Certamente está a perguntar se a palavra se encontra dicionarizada: não está. Trata-se, portanto, de um regionalismo da zona de Mafra (Portugal), que aqui fica atestado, não sei se pela primeira vez.

Pergunta:

O a da palavra patético é aberto?

Resposta:

É, mesmo no português europeu (PE).

Se consultar o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, verá que a transcrição fonética da palavra tem a aberto, apesar de este se encontrar em sílaba átona: [pa`tɛtiku]. Isto não impede que alguns falantes de PE, justamente porque se trata de um a átono, o pronunciem fechado (como os aa de para), sem que se possa considerar isto uma incorrecção: [pɐ`tɛtiku].