Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem esta dúvida:

Por exemplo, diz-se «máquina de frutas», «máquina de sumos» ( estas com um sentido geral), mas porquê «máquina de café» e não «máquina do café» (quando esta é mais específica)?

Obrigada desde já.

Resposta:

Diz «máquina de café», como diz «máquina de sumos», porque se trata de uma máquina de «fazer café» ou «fazer sumos», sem artigo, porque esses substantivos se referem a bebidas sem as quantificar, especificar ou retomar em discurso. Não vejo, portanto, que haja maior especificidade em «máquina que faz café» do que «em máquina de fazer sumos».

Note que «máquina de café», «fazer café» e «comprar café» referem-se a um produto ou uma matéria indiferenciada, como «farinha» na expressão «juntar farinha». A palavra café leva artigo se quisermos mencioná-lo como produto diferenciado de outro («o café é mais aromático do que o chá»), quando se pretende referir o momento em que se bebe café («máquina usada no momento do café») ou quando se trata de uma máquina identificada em discurso como pertencente a um café, «estabelecimento onde geralmente se servem bebidas, acompanhadas ou não de bolos e sanduíches».

Pergunta:

No âmbito de um trabalho para a disciplina de Sociologia da Educação, analisei um texto de Manuel Pinto e Sara Pereira ("As crianças e os media: discursos, percursos e silêncios"), no qual encontrei as palavras "mediocêntrico" e "sociocêntrico". Podem explicar-me os significados destas palavras, que não consigo encontrar?

Muito obrigada.

Resposta:

Os termos em questão são neologismos e, pela análise dos seus elementos constituintes, propõem-se os seguintes significados:

mediocêntrico (medio-, «relativo a media» + cêntrico): «que está centrado nos media (= meios de comunicação social; mídia no Brasil)»;

sociocêntrico (socio-, «relativo à sociedade ou a grupo» + cêntrico): «que está centrado na sociedade ou num grupo».

Note-se que estes neologismos seguem geralmente o modelo de egocêntrico («centrado em si próprio»).

Pergunta:

É mais correcto dizer «roupa "enrodilhada"», ou «roupa "encorrilhada"», se é que ambas significam «roupa com rugas»?

Muitos parabéns pelo projecto.

Obrigada.

Resposta:

É realmente a mesma coisa na prática. Contudo, é de notar que enrodilhado e encorrilhado são adjectivos com origem nos particípios passados dos verbos enrodilhar e encorrilhar, respectivamente. Estes verbos não têm exactamente o mesmo significado: enrodilhar é o mesmo que «deixar enrugado», enquanto encorrilhar é «deixar enrolado, complicado» (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora). Além disso, parece que a distribuição geográfica dos verbos não é a mesma: segundo o Dicionário Houaiss, encorrilhar é regionalismo minhoto, pelo que enrodilhar terá também a característica de ser termo mais corrente entre todos os falantes do português europeu. Sendo assim, direi que actualmente, em português europeu, enrodilhado e encorrilhado são sinónimos, embora esta relação seja resultado de diferentes percursos históricos e morfológicos.

Pergunta:

Gostaria da vossa ajuda no esclarecimento da seguinte dúvida:

Está correcto dizer-se «A dose inicial do medicamento é 10 mg», ou deverá dizer-se «A dose inicial do medicamento é de 10 mg»?

Agradeço já a vossa atenção.

Resposta:

Pode dizer de três maneiras:

a) «A dose inicial do medicamento é 10 mg.»

b) «A dose inicial do medicamento são 10 mg.»

c) «A dose inicial do medicamento é de 10 mg.»

Há uma diferença entre a) e b), por um lado, e c), por outro. No primeiro caso, há uma identificação ente duas expressões nominais, ou seja, entre «dose» e «10 mg»: nas frases, que também são chamadas equativas ou identificacionais, diz-se que «uma dose» é o mesmo que «10 mg» (neste tipo de frases, o verbo ser concorda geralmente com o predicativo do sujeito, se este for realizado por uma expressão nominal no plural). No segundo, a função de «de 10 mg» é atributiva, uma vez que permite especificar o valor da dose: do ponto de vista sintáctico, «de 10 mg» é equivalente a um adjectivo: «a dose é grande».

Pergunta:

Muita estranheza me provocou a vossa resposta n.º 26759 sobre a forma «Bahrein» e o respectivo gentílico. Não é minha intenção corrigir-vos, e nem refutar a vossa resposta, mas gostaria de expor a minha interpretação. Eu sempre conheci o nome do país como «Bahrain» (بحرين). Sabendo eu que a língua árabe só possui três vogais (i, a, u) parece-me estranho uma grafia com e. Consequentemente, sempre pronunciei a parte final com um ditongo oral seguido de consoante nasal [ajn], e nunca como ditongo nasal [ɐ̃j] (como se fosse «ãe»). Por isso, provoca-me estranheza o «m» em «baremita»... Parece-me haver pequenas confusões sucessivas entre a escrita e a pronúncia. Deduzo que, a partir da forma escrita «Bahrein», alguém deve ter pronunciado as três últimas letras como se fossem um ditongo nasal (os Brasileiros, ao verem uma palavra escrita com uma consoante final nasal, pronunciam sistematicamente com uma vogal nasal, mesmo quando essa palavra não pertence à língua portuguesa!). Depois, a partir da pronúncia com ditongo nasal, aportuguesou-se a palavra para «Barém» (quando talvez, para ser mais fiel à pronúncia original, podia ter sido algo como «Baraine», por exemplo). E seguidamente, a partir da forma escrita «Barém», forjou-se o gentílico «baremita», sem no entanto nunca ter existido o fonema «m» que justificasse tal formação. Conforme o que eu tinha dito antes, não pretendo ter a arrogância de corrigir-vos. Mas talvez os «fazedores» da língua portuguesa possam ter um critério mais uniforme quando tentarem aportuguesar nomes estrangeiros: ou apoiam-se unicamente na grafia, ou apoiam-se unicamente na pronúncia. Obrigado pela atenção.

Resposta:

Barém é forma tradicional, resultado do modo como os portugueses do século XVI interpretaram a terminação "-ayn" da palavra árabe (um dual, de acordo com o Dicionário Houaiss). As formas Barein e Bareine surgem atestadas no português do Brasil (ver Dicionário Houaiss) e afiguram-se-me de introdução ou criação recente, talvez influenciadas por transcrições inglesas de uso internacional. Quanto à forma "Baraine", é certamente mais próxima de uma transliteração da forma escrita árabe (بحرين, como informa o consulente), mas não tem tradição em português. De qualquer modo, gostaria de observar que, em muitas variedades do árabe, históricas ou contemporâneas, o a soa como e, fenómeno que é conhecido como imala.1 Sendo assim, é provável que a forma Bareine seja a mais próxima da realidade fonética árabe.

Já o gentílico baremita é realmente discutível, porque muitas palavras terminadas em -em têm gentílico com -n-: Belém > belenense. Normalmente, o critério seguido nestes casos de derivação é de carácter etimológico. Por exemplo, o gentílico de Sudão é sudanês, que pressupõe uma forma do radical Sudan-, mais "próxima da  palavra árabe original, conforme se pode verificar no Dicionário Houaiss, onde se encontra o seguinte comentário: «em autores árabes medievais aparece o nome ár. Bilad-al-Suden, Bilad-es-Sudan, modernamente Bilād-as-Sūdan "o país dos negros", fonte do port. Sudão, esp. Sudán, it. ing. al. Sudan, fr. Soudan, cursivos a partir do sXVI-XVII». Posso referir outro caso, o de Lafões, designação de uma r...