Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No seguimento de uma resposta anterior vossa sobre palavras compostas com o prefixo nano-, gostaria de perguntar se a palavra "nanobjecto" ("nano" + "objecto") deverá ter apenas um o, ou manter os dois, quando as duas palavras se combinam.

Muito obrigado.

Resposta:

No quadro do Acordo Ortográfico de 1945 (AO 45; no momento em que escrevo, ainda em vigor em Portugal), não encontro referência directa ao prefixo de origem grega nano-. Em princípio, como tem duas sílabas e termina em o, assemelha-se a auto-, neo-, proto- e pseudo-, elementos também provenientes do grego, que são explicitamente mencionados e comentados no texto do AO 45, Base XXIX:

«2.°) compostos formados com os elementos de origem grega auto, neo, proto e pseudo, quando o segundo elemento tem vida à parte e começa por vogal, h, r ou s: auto-educação, auto-retrato, auto-sugestão; neo-escolástico, neo-helénico, neo-republicano, neo-socialista; proto-árico, proto-histórico, proto-romântico, proto-sulfureto; pseudo-apóstolo, pseudo-revelação, pseudo-sábio

Tendo nano- uma estrutura silábica análoga a estes elementos, parece-me, legítimo aplicar-lhe a mesma regra. Sendo assim, recomendo nano-objecto.1

Em relação ao novo acordo, adoptar-se-á o critério exposto no n.º 1 da base XVI:

«Nas formações com prefixos (como, por exemplo: ante-, anti-, circum-, co-, contra-, entre-, extra-, hiper-, infra-, intra-, pós-, pré-, pró-, sobre-, sub-, super-, supra-, ultra-, etc.) e em formações por recomposição, isto é, com elementos não autónomos ou falsos prefixos, de origem grega e latina (tais como: aero-, agro-, arqui-, auto-, bio-, eletro-, geo-, hidro-, inter-, macro-, maxi-, micro-, mini-, multi-, neo-, pan-, pluri-, proto­, pseudo­, retro-, semi-, tele-, etc.), só se emprega o hífen...

Pergunta:

Gostaria de qual é o significado da expressão «é bom de crer».

Obrigada.

Resposta:

A expressão «é bom de crer» é equivalente a «é fácil acreditar, admitir», «é crível». O Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa (Porto, Livraria Chardron e Lello e Irmão Editores), de Énio Ramalho, regista «é bom de ver», expressão sintacticamente próxima, mas com valor de maior certeza, que significa «não é difícil compreender». O referido dicionário também regista isoladamente a entrada «bom de», com o sentido de «fácil de», atestada pela frase «este ponto de malha é bom de fazer com uma agulha grossa». Concluo, portanto, que as expressões «é bom de crer» e «é bom de ver» constituem casos particulares da associação de «(é) bom de» a um verbo no infinitivo, ocorrendo como predicados de uma oração completiva («é bom de crer/ver que o João não é mau rapaz»), como orações intercaladas («o João, é bom de crer/ver, não é mau rapaz») ou inseridas numa oração conformativa («como é bom de crer/ver, o João não é mau rapaz»).

Pergunta:

"Turgia", ou "trugia"? Como se escreve e pronuncia esta palavra, que significa «bugiganga, tralha» e se ouve no Alentejo?

Resposta:

A palavra em questão tem duas formas, turgia e trugia, mas parece haver preferência pela segunda.

Vítor Fernado Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro, no Dicionário de Falares do Alentejo (Porto, Campo das Letras, 2005), indicam duas variantes, turgia e trugia, relativas a um substantivo feminino que significa «artigos vários», «bugigangas, trastes, coisas sem préstimo». Também se regista trugia como regionalismo alentejano na 10.ª edição do dicionário de António Morais da Silva (Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, Lisboa, Confluência/Livros Horizonte, 1980), com acepções idênticas às já referidas: «artigos vários», «o mobiliário de um quarto», «objectos heterogéneos», «tralha, complicação». O uso deste vocábulo não se limita ao Alentejo; está também atestado, mais uma vez sob a forma trugia, no falar da serra de Monchique (Algarve), de acordo com o glossário do sítio O Parente de Refóias: «trugia [...]: Utensílios pessoais com pouco valor, geralmente, embrulhados num pano; tarecos; tranquitanas; traquitanas.»

Pergunta:

Qual a origem da expressão «primeiros socorros»?

E qual a origem de cada uma das palavras/qual a palavra que originou primeiros e socorros?

Resposta:

Sobre a expressão «primeiros socorros», temos dados escassos, porque os dicionários consultados (Academia das Ciências de Lisboa, Houaiss, Dicionário Unesp do Português Contemporâneo) a incluem no artigo de socorro, sem outras indicações que não sejam as respeitantes ao seu significado.1

Quanto às palavras que constituem a expressão, o Dicionário Houaiss propõe a seguinte etimologia:

primeiro: «lat[im] cl[ássico] primarĭus,a,um, "o primeiro (em posição), de primeira ordem"; inicialmente, a f[orma] deste numeral era prĭmus, que se manteve, no port[uguês], com ac[e]p[ção] distinta [...]».2

socorro: é derivado regressivo de socorrer, verbo que tem origem no «lat[im] succūrro,is,i,sum,rĕre, "ir ou vir em auxílio, prestar socorro, socorrer, ajudar, aliviar, proteger, defender", de suc = sub + currĕre, "correr em socorro" [...]».
 
1 Pode conjecturar-se que que a semelhança de primeiros socorros com o inglês first aid ou o francês premiers secours indicia um decalque semântico. Tal tradução pode ter sido motivada pela expansão dos cuidados médicos decorrente do aparecimento de entidades de carácter internacional como a Cruz Vermelha.

2 Em português, o latim primus deu origem sobretudo à designação de uma relação de paren...

Pergunta:

Gostaria que me explicassem o sentido do provérbio «Sol e chuva, casamento de viúva».

Obrigada.

Resposta:

Este provérbio faz parte de um conjunto que se refere a fenómenos meteorológicos, normalmente em estreita ligação com as actividades do mundo rural. Ao que parece, trata-se de comentários que decorrem de certas concepções mitológicas ou mágicas sobre o tempo atmosférico e o ciclo das estações.

O provérbio em causa vem referido, sem explicitação do seu significado, no Dicionário de Provérbios: Francês-Português-Inglês de Roberto Cortes de Lacerda et al. (Lisboa, Contexto, 2000, pág. 102), que o junta aos seguintes:

«Chuva e sol, casamento de espanhol.»

«Chuva e sol, casamento de raposa.»

«Quando chove e faz sol, casam-se as feiticeiras.»

«Quando chove e faz sol, estão as bruxas em Antanhol, embrulhadas num lençol a dançar o caracol.»

Como se vê, este conjunto de provérbios sugere que a coincidência de chuva e sol é encarada como um paradoxo, situação que exige um comentário também ele paradoxal, se não mesmo surrealista, indo ao encontro de certa mitologia.

Lacerda et al. apresentam estes provérbios como equivalentes ao francês «(C´est) le Diable (qui) bat sa femme (et marie sa fille)» [«(É) o Diabo (que) bate na mulher (e casa a filha)»]. No intuito de revelar o sentido deste dito francês, citam A. Rey e S. Cantreau, Dictionnaire des expressions et locutions, Paris, Le Robert, 1993):

«Segundo Gottschalk, tratar-se-ia da adaptação cristã de uma lenda relatada por Plutarco, na qual Júpiter, deus do fogo, discutia com Juno, deusa da humidade» (tradução do seguinte texto em francês: "Selon Gottschalk, il s´agirait de l´adaptation chrétienne d´une lég...