Pergunta:
Um dia desses, no dia 6 de outubro para ser mais exato, uma frase deu na cabeça do Paulo Coelho (eu não faço idéia por que "cargas d´água"), e ele resolveu publicá-la então no Twitter.
Eis a frase:
«Dê poder a alguém, e ele lhe venderá no mercado de escravos.»
Entendi essa frase imediatamente. Mas, por eu ser um estrangeiro no idioma português, estou sempre desconfiado e leio tudo duas vezes. Quando li a frase a segunda vez, o sentido gramatical que dela extraí não bateu em nada com o que entendi na primeira lida.
Depois mostrei a frase para vários brasileiros, e o sentido que esses extraíam dela era 100% de acordo com o meu primeiro entendimento da frase. Depois o Paulo Coelho publicou uma tradução para o inglês, a qual também confirmou esse sentido original da frase.
Reproduzo aqui a tradução de Paulo Coelho para o inglês:
«Empower someone, and he will sell you in the slave market.»
Agora, minha dúvida gramatical e minha segunda lida: eu suponho aqui que no português brasileiro use-se muito o objeto nulo. Ou seja, em vez de reafirmar o complemento direto por um pronome, omite-se este pronome. O objeto nulo é perfeitamente aceitável no português do Brasil? Então, esse não é meu problema com a frase.
Em vez de escrever
«Dê poder a alguém, e ele LHO venderá no mercado de escravos»,
o Paulo Coelho optou então pelo objeto nulo escrevendo:
«Dê poder a alguém, e ele LHE venderá no mercado de escravos.»
Resta saber, então, a quem se refere o pronome lhe. Por mais qu...
Resposta:
A frase em causa não apresenta uma construção de sujeito nulo, é mesmo um exemplo de um emprego dialectal brasileiro que consiste em atribuir a lhe a função de objecto directo. A solução do problema está na própria tradução em inglês, confirmada pelos próprios falantes brasileiros. A frase de Paulo Coelho pode, portanto, ser parafraseada, com reforço do pronome oblíquo, do seguinte modo:
1 – «Dê poder a alguém, e ele o venderá (a você) no mercado de escravos.»
Ou, de forma mais clara, na voz passiva:
2 – «Dê poder a alguém, e você será vendido por essa pessoa no mercado de escravos.»
Trata-se de um uso que não faz parte do padrão culto e que é conhecido, como diz o consulente, por lheísmo, assim descrito pelo Dicionário Houaiss (s. v. lheísmo):
«fenômeno linguístico que ocorre em alguns dialetos (sociais ou regionais, ou ambos) do português do Brasil, que consiste em substituir por lhe(s) os pronomes o(s), a(s) (referentes ao tratamento você, vocês), na função de objeto direto (p. ex.: ele lhe convidou para ir ao cinema?).»
Em nota, acrescenta-se ainda:
«para explicar essa tendência de eliminar da linguagem brasileira as formas oblíquas (l)o(s)/(l)a(s), têm-se invocado já a ação da analogia (A. Nascentes), já razões de ordem fonética (J. Mattoso Câmara Jr.); cumpre notar: a) que o esp[anhol] le(s), da mesma fonte que o port[uguês] lhe(s), foi desde cedo empr[egado] alternativamente com lo(s)/ la(s) — correspondentes ao port[uguês] o(s)/a(s) —, de tal modo que pôde acumular as funções de obj[eto] dir[eto] e de obj[eto] ind[ir...