Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual seria, porventura, o gentílico da Pomerélia, antiga região da Polônia? Caso exista, por favor, dizei-me se ele funciona como adjetivo e substantivo.

Muito obrigado.

Resposta:

Dado a região em apreço ter muito pouca projecção no discurso informativo em português, não se identifica gentílico fixado ou estável. Isto significa que podem, pelo menos, abrir-se duas opções, de acordo com o modelo de outros nomes pátrios referentes a regiões da Europa centro-oriental e do Nordeste: pomerélio (cf. Lapóia-lapónio1; Lusácia-lusácio); pomereliano (cf. Livónia-livoniano2; Silésia-silesiano). Como se trata de formas não atestadas, sobre as quais não se impuseram ainda restrições de uso, considere-se o uso de pomerélio e pomereliano como adjectivos e substantivos.

1 Quando se trata da língua dos Lapões, Rebelo Gonçalves, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), estipula o uso de lapónico.

2 Também é possível livónio. Quando se trata da língua dos Livónios, Rebelo Gonçalves (op. cit.) define livónico como forma correcta.

Pergunta:

Qual o coletivo para minhoca, formiga e mosca?

Resposta:

A palavra minhoca não parece ter colectivo consagrado, uma vez que os dicionários e guias consultados (Dicionário Houaiss, Nos Garimpos da Linguagem, de Luiz Autuori e Oswaldo Proença, e Dicionário de Colectivos, das Publicações Europa-América) não facultam qualquer pista sobre a eventualidade de um substantivo dessa natureza. No entanto, sugiro que se use a palavra praga, sempre que a carga disfórica deste substantivo se justificar referencialmente.

formiga e mosca têm colectivos que lhes são próprios: a formiga faz-se corresponder carreiro, colónia, correição e carreiro, bem como formigame e formigueiro (Dicionário Houaiss); para mosca, temos enxame, moscaréu, moscaria, mosquedo, mosqueiro, nuvem, praga (idem).

Pergunta:

Quando estamos a referir leis físicas, devemos apresentar «Lei de Newton», ou «lei de Newton»?

Resposta:

Usa-se a minúscula inicial como se comprova por subentradas como «lei da gravitação de Newton» (Dicionário Houaiss) e «lei de Murphy» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, em versão em linha na Infopédia). Observe-se que, apesar de não referir uma lei física, a expressão «lei de Murphy», definida como aforismo («há sempre razões para as coisas que correm mal virem a correr ainda pior»), imita as expressões designativas de leis científicas, exibindo também minúscula inicial.

Pergunta:

Numa reportagem do telejornal de 9/7 sobre São Martinho do Porto, é referido que se trata de uma «"instância" balnear». Quando ouvi a palavra instância, julguei ter percebido mal e que se trataria de estância como sempre ouvi, mas entretanto apareceu escrito «a vila é instância balnear desde fins do século XIX». Está correto o uso da expressão «instância balnear»?

Os meus agradecimentos pelo esclarecimento.

Resposta:

Como se pode calcular, trata-se de um erro, em lugar da forma correcta «estância balnear».

Estância e instância são palavras parónimas (têm fonética semelhante), mas distinguem-se claramente pela sua semântica.

Estância tem as seguintes acepções (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa): «1. Residência fixa. 2. Aposento. 3. Parada em jornada. 4. Casa ou armazém de venda de madeiras, combustíveis, etc. 5. Ancoradouro. 6. Camarata dos grumetes a bordo. 7. Tábua de que os pedreiros vão tirando com a colher a argamassa de que se servem. 8. Baluarte. 9. Fortim. 10. Estrofe. 11. Local de estadia temporária para férias, repouso ou tratamento de doenças. 12. [Brasil] Fazenda para criação de gado; barracão, onde vivem em promiscuidade numerosas pessoas; cortiço.

Instância significa (idem): «1. Insistência, empenho ou veemência no pedir. 2. Pressa que se exige na realização de um ato. 3. Repetição de ordens ou mandados. 4. Objeção à resposta dada a um argumento. 5. Juízo, foro, jurisdição.»

Pergunta:

Tenho uma dúvida quanto à evolução do grupo latino -lt- ao português. No dialeto gaúcho (assim como em outros dialetos do português e em galego), existe a forma escuitá em lugar de escutar. Então pensei no exemplo do espanhol onde escuchar corresponde à mesma evolução de mucho. Escuitar me pareceu, então a evolução natural e regular de auscultare, assim como de multus chegamos a muito. No entanto, de altus chegamos a alto tanto em português como em espanhol. Enfim, existe uma evolução natural e regular no português para o grupo -lt-? Há exceções ou sub-regras?

Resposta:

A sequência latina -LT- evoluiu para -it- em português e galego apenas quando precedida de -U-: MULTUM > muito (português) e moito (dialectos galegos modernos); AUSCULTO > escuito (português e galego antigos) > escuto (português-padrão moderno), escuito, escoito (dialectos galegos modernos). Em castelhano, a evolução de -uit- prosseguiu, com metátese do -i e palatalização da consoante dental: MULTUM > muito > mutio > mucho; AUSCULTO > escuito > escutio > escucho.

Precedida de outra vogal, a sequência -LT- passava a -ut-: ALTARIU- >  *autario > outeiro (português e galego). Em castelhano antigo, terá havido também um ditongo, que depois se monotongou: ALTARIU- > *autario > outeiro > otero. No entanto, em relação a ALTU-, a evolução descrita não se verificou completamente (embora se documente outo em português e galego), pelo que o grupo -lt- acabou por perdurar na forma alto do português, homónima de alto, também em castelhano (hoje chamado espanhol).

Fontes: Edwin B. Williams, Do Latim ao Português, Rio de Janeiro, Tempor Brasileiro, 2001, pág. 67; Rafael Lapesa, Historia de la Lengua Española, Madrid, Editorial Gredos, 1981, págs. 164-165 e 185.