Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Quando estamos a referir leis físicas, devemos apresentar «Lei de Newton», ou «lei de Newton»?

Resposta:

Usa-se a minúscula inicial como se comprova por subentradas como «lei da gravitação de Newton» (Dicionário Houaiss) e «lei de Murphy» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, em versão em linha na Infopédia). Observe-se que, apesar de não referir uma lei física, a expressão «lei de Murphy», definida como aforismo («há sempre razões para as coisas que correm mal virem a correr ainda pior»), imita as expressões designativas de leis científicas, exibindo também minúscula inicial.

Pergunta:

Numa reportagem do telejornal de 9/7 sobre São Martinho do Porto, é referido que se trata de uma «"instância" balnear». Quando ouvi a palavra instância, julguei ter percebido mal e que se trataria de estância como sempre ouvi, mas entretanto apareceu escrito «a vila é instância balnear desde fins do século XIX». Está correto o uso da expressão «instância balnear»?

Os meus agradecimentos pelo esclarecimento.

Resposta:

Como se pode calcular, trata-se de um erro, em lugar da forma correcta «estância balnear».

Estância e instância são palavras parónimas (têm fonética semelhante), mas distinguem-se claramente pela sua semântica.

Estância tem as seguintes acepções (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa): «1. Residência fixa. 2. Aposento. 3. Parada em jornada. 4. Casa ou armazém de venda de madeiras, combustíveis, etc. 5. Ancoradouro. 6. Camarata dos grumetes a bordo. 7. Tábua de que os pedreiros vão tirando com a colher a argamassa de que se servem. 8. Baluarte. 9. Fortim. 10. Estrofe. 11. Local de estadia temporária para férias, repouso ou tratamento de doenças. 12. [Brasil] Fazenda para criação de gado; barracão, onde vivem em promiscuidade numerosas pessoas; cortiço.

Instância significa (idem): «1. Insistência, empenho ou veemência no pedir. 2. Pressa que se exige na realização de um ato. 3. Repetição de ordens ou mandados. 4. Objeção à resposta dada a um argumento. 5. Juízo, foro, jurisdição.»

Pergunta:

Tenho uma dúvida quanto à evolução do grupo latino -lt- ao português. No dialeto gaúcho (assim como em outros dialetos do português e em galego), existe a forma escuitá em lugar de escutar. Então pensei no exemplo do espanhol onde escuchar corresponde à mesma evolução de mucho. Escuitar me pareceu, então a evolução natural e regular de auscultare, assim como de multus chegamos a muito. No entanto, de altus chegamos a alto tanto em português como em espanhol. Enfim, existe uma evolução natural e regular no português para o grupo -lt-? Há exceções ou sub-regras?

Resposta:

A sequência latina -LT- evoluiu para -it- em português e galego apenas quando precedida de -U-: MULTUM > muito (português) e moito (dialectos galegos modernos); AUSCULTO > escuito (português e galego antigos) > escuto (português-padrão moderno), escuito, escoito (dialectos galegos modernos). Em castelhano, a evolução de -uit- prosseguiu, com metátese do -i e palatalização da consoante dental: MULTUM > muito > mutio > mucho; AUSCULTO > escuito > escutio > escucho.

Precedida de outra vogal, a sequência -LT- passava a -ut-: ALTARIU- >  *autario > outeiro (português e galego). Em castelhano antigo, terá havido também um ditongo, que depois se monotongou: ALTARIU- > *autario > outeiro > otero. No entanto, em relação a ALTU-, a evolução descrita não se verificou completamente (embora se documente outo em português e galego), pelo que o grupo -lt- acabou por perdurar na forma alto do português, homónima de alto, também em castelhano (hoje chamado espanhol).

Fontes: Edwin B. Williams, Do Latim ao Português, Rio de Janeiro, Tempor Brasileiro, 2001, pág. 67; Rafael Lapesa, Historia de la Lengua Española, Madrid, Editorial Gredos, 1981, págs. 164-165 e 185.

Pergunta:

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), editado pela Academia Brasileira de Letras, abona os seguintes verbetes: estupro e estrupo.

Com fulcro nos dicionários de Caldas Aulete e António de Morais Silva, concluo que se trata de parônimos, mas, não, de formas variantes. Em síntese: apesar da falta da devida advertência na citada publicação, a exemplo do que se verifica em outros vocábulos (e.g. eminente e iminente), o abono da ABL não autoriza que se use estrupo por estupro. Submeto esse entendimento à douta apreciação dos que fazem esse preciosíssimo sítio, excepcional e incomparável serviço à língua portuguesa.

Resposta:

À primeira vista, eu diria que estrupo é deturpação de estupro e, como tal, aparece por lapso no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letra (o VOLP da Porto Editora também acolhe as duas entradas). Além disso, consultei vários dicionários (Houaiss, Priberam, Porto Editora, Academia das Ciências de Lisboa), sem que estrupo conste em nenhum deles. Contudo, foi no Aulete Digital que dei com o substantivo masculino estrupo, com o significado de «tropel, tumulto, ruído», sinónimo de estrupido.

Em conclusão, encaro estrupo como palavra legítima, apesar de escassamente atestada, e parónima de estupro. E concordo com o consulente quanto à necessidade de uma advertência que assinale este caso de paronímia nos vocabulários ortográficos mencionados.

Pergunta:

Li hoje no jornal Destak o seguinte título de notícia na secção Fama e TV: «Avó de Irina (Shayk) foi espiã»... O termo "espiã", que desconheço, existe mesmo, ou é gaffe e deveriam querer dizer espia, do verbo espiar?... E, já agora, também é correcto dizer expiar, ou tem significado completamente diferente de espiar?

Obrigado.

Resposta:

O vocábulo espiã existe e encontra-se mesmo descrito como o feminino de espião (cf. Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português, Editora Unesp, 2003). Sucede, no entanto, que, em Portugal, se vulgarizou a forma espia, originalmente substantivo dos dois géneros, como feminino de espião, talvez em analogia com o par ladrão/ladra, cujo feminino, como espia, não exibe ditongo nasal.

Quanto a espiar e expiar, trata-se de verbos diferentes, conforme descreve Moura Neves (op. cit.):

O verbo espiar significa «observar», «olhar», «espreitar» [...].

O verbo expiar significa «remir (uma culpa), cumprindo pena».

Assinale-se que as acepções atribuídas por Moura Neves a espiar são sobretudo características do português brasileiro, visto que, em português europeu, o verbo em apreço é mais usado no sentido de «observar secretamente» e «seguir ocultamente os passos de».

Convém também referir que esp...