Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na oração «Ele comia privativamente em seu chalé e fazia caminhadas longas e rápidas a cada manhã», deve-se usar ou não a preposição a antes de cada?

A frase foi traduzida do inglês: «He ate privately in his cottage and took long, fast walks each morning» (do Livro Talking Peace, p.14, Puffin Books, segunda edição, 1995, de Jimmy Carter, falando de Anwar Sadat nas reuniões de Camp David).

Seria aquela a melhor tradução para «each morning»?

Resposta:

A expressão «a cada manhã» (ou «cada manhã», sem preposição) está correta, mas também é possível e até corrente a construção com todas: «todas as manhãs»1.

Por outro lado, convém observar que é muito discutível traduzir privately por privativamente. Na verdade, o advérbio de modo inglês tem vários equivalentes, entre eles, a locução «em privado»2, mas privativamente não se conta nessas traduções porque este advérbio significa «de modo especial, de modo exclusivo», como se infere de dois exemplos retirados do Corpus do Português:

(1) «pelo que respeita à Antonomásia, que aquillo que mais privativamente a caracteriza, é a relação do individuo com os seus accessorios» (Francisco Freire de Carvalho, Lições Elementares de Eloquência Nacional, 1840).

(2) «A capela era pequena, mas muito bem tratada. Ao rés do chão, à esquerda, perto do altar, uma tribuna servia privativamente à dona da casa, e às senhoras da família ou hóspedas, que entravam pelo interior [...]» (Machado de Assis, Casa Velha, 1886)

Sugere-se, portanto, uma formulação alternativa para a frase em questão:

«Ele comia em privado no seu chalé e fazia caminhadas longas e rápidas todas as manhãs.»

 

1 Pode dizer-se  que «cada manhã» traduz a expressão inglesa each morning e que «todas as manhãs» corresponde a every morning (cf.

Pergunta:

Gostaria de saber a etimologia da palavra alcar e/ou o seu significado.

Apenas sei que deriva do árabe: al-qārah.

Obrigada

Resposta:

O nome maculino alcar denomina um «arbusto vivaz, da família das Cistáceas, nativo da região mediterrânica (é espontâneo e frequente em Portugal), [que] apresenta folhas elípticas, com pelos na face superior e flores de pétalas amarelas» (dicionário da Infopédia). O nome científico é Helianthemum tuberaria (ibidem; ver também o Dicionário Priberam , o dicionário de Caldas Aulete e o Dicionário Houaiss). Os dicionários consultados indicam igualmente que esta planta é ainda conhecida pelos nomes de sargaço-híspido, erva-das-sete-sangrias e sete-sangrias.

Já quanto à etimologia, há consenso quanto à origem árabe, mas menos clara se torna a palavra exata que dá o étimo. Parte dos dicionários em referência apresentam formas que variam entre al-qar, al-qara e al-qārah, sem que se consiga identificar um significado inequívoco. O dicionário Infopédia apresenta alkara, no sentido de «marroio» ou «marrúbio», nome que designa plantas do género Marrubium, da família das labiadas (cf. Dicionário Houaiss e Infopédia).

Pergunta:

É mais correta a designação de «o meu cunhado» ou a de «o meu ex-cunhado» para referir o irmão da minha ex-mulher?

Resposta:

Se se trata de fazer referência, numa situação de divórcio, ao irmão da ex-mulher, a expressão adequada é ex-cunhado.

A pergunta é de natureza jurídica e envolve aspetos extralinguísticos, conceptuais e técnicos, que não dependem de um juízo gramatical. Mesmo assim, pode apurar-se que o uso de ex-cunhado é correto, uma vez que, numa situação de divórcio, termina também a afinidade com os parentes do ex-cônjuge.

Por outras palavras, assim como se diz ex-sogra e ex-sogro, também se dirá ex-cunhado, porque com o divórcio, cessam os laços de afinidade, conforme se observa nos seguintes esclarecimentos relativos à definição dos laços de afinidade no quadro jurídico português:

(1) «Se o casamento terminar por morte de um dos cônjuges, mantêm-se os laços de afinidade. Neste caso, a sogra continua a ser sogra.

Mas se o casamento terminar por divórcio, de acordo com a actual legislação, em vigor desde 1 de Novembro de 2008, cessam os laços de afinidade.

Agora, pode dizer-se com toda a propriedade “ex-sogra”.»

(Edgar Valles, "Sogra ou ex-sogra", Consultório de Justiça, in Público)

(2) «A afinidade [com os parentes do cônjuge] não cessa com a dissolução do casamento por morte de um dos cônjuges. Mesmo tendo um deles falecido, o outro continua a ser afim dos seus parentes. Já se ocorre a dissolução do casamento por divórcio, as relações de afinidade cessam» (Laura Teixeira, "Relações familiares", 05/06/2021).

Acresce que afinidade é termo e conceito jurídico, definido em Portugal como «o vínculo que liga cada um d...

Pergunta:

Deve escrever-se «Ouvi falar de um tal de João Pereira» (por exemplo) ou «Ouvi falar de um tal João Pereira»? O de é aceitável? É obrigatório? É que nem consigo perceber de onde vem esta expressão tão estranha: «um tal de».

Obrigado.

Resposta:

Com nomes próprios, aceita-se a associação de ambas as construções.

Contudo, na construção com a preposição de, deteta-se certo valor depreciativo e há que enquadrá-la num registo informal. É preciso também ter em conta a história das duas construções.

1. Um(a) tal de + nome próprio

A expressão «um tal de» está identificada como um brasileirismo, conforme indicação de um dicionário produzido no Brasil – o Dicionário Houaiss (s. v. tal):

«um tal de – Regionalismo: Brasil. empregada pejorativa ou desdenhosamente em relação a outra pessoa Ex.: casou-se com uma tal de Leonor

Mas não se pense que este uso está ausente dos dicionários elaborados de Portugal. Na verdade, «um tal de» tem registo no dicionário de português da Infopédia sem especial atribuição dialetológica: « um(a) tal de: expressão usada, geralmente de forma depreciativa, para designar alguém cuja identidade não se tem a certeza.» Não obstante, o registo feito em dicionários de Portugal parece posterior aos do Brasil, o que sugere que se trata de um empréstimo da variedades brasileira para a variedade de Portugal1.

2. Um tal + nome comum/ nome próprio

Tem registo num dicionário português, o da Academia de Ciências de Lisboa, e não com um nome próprio:

(1) «Respondeu-me um tal bem antipático.»

O certo é que «um tal» tem tradição no português, pelo menos desde o século XVI, como refere 

Pergunta:

Gostaria de saber qual a versão correta, em português de Portugal, do nome do seguinte rio da mítica Troia, que era também uma divindade grega: "Simoente", "Simóis" ou "Símois"?

Muito obrigado.

Resposta:

As formas registadas nas fontes que consultámos são Simoente e Símois.

Em Portugal, a forma que tem maior favor é de facto Simoente1.

A forma Símois é também considerada correta2, mas é no Brasil que parece mais consolidada, pelo menos, a avaliar pelo facto de encontrar registada no Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa (1999) da Academia Brasileira de Letras.

Não se recomenda a forma "Simóis".

 

1 Cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa (1966); M.ª Helena T. C. Ureña Prieto et al. Do grego e do Latim ao Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 1995); e "Ilíada" in Infopédia.

2 Ver, p. ex., o Dicionário Enciclopédico Lello.