Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Muito se lê «de pouco vale» (por exemplo: «De pouco vale esforçares-te tanto.).

A minha pergunta é: porque de? Não nos estamos a referir apenas a uma coisa ou ato que pouco vale, sem de? A pergunta é bizantina, mas desconheço a resposta.

Muito obrigado.

Resposta:

O uso em questão parece não ter tido descrição nem juízo normativo especial. Não há, portanto, comentário que leve a crer que estejamos na presença de um uso incorreto.

Mesmo assim, importa assinalar que as locuções «de nada» e «de pouco» se associam ao verbo servir, tal como outras introduzidas por de – «servir de exemplo/lição» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa ) –, o que sugere que «de nada/pouco vale» ocorra por analogia.

Além disso, há registo da estrutura interrogativa «de que vale...?» (ver Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho), a qual permite legitimar respostas como «não vale de nada», «vale de pouco», ou, com inversão, como parece ter-se fixado ao modo de expressão idiomática, «de nada/pouco vale».

Há exemplos literários quer de «de nada vale» e «de nada/pouco serve», os quais não são propriamente recentes (Corpus do Português):

(1) «Ao ver-me, ela compôs-se um pouco, mas de nada valeu.» (Fialho d'Almeida, A Cidade do Vício, 1882)

(2) «Acusaram-nos das práticas mais infames e de nada valeram nem os seus protestos, nem as suas súplicas.» (Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, 1994)

(3) «Para esta de nada serve a apática prudência que pouco a pouco nos precepita nos laços cavilosos que nos tende o implacável inimigo de tôdas as nações [...]» (Marquesa de Alorna, Cartas e Outros...

Pergunta:

Um antigo estúdio de animação americano era chamado de Filmation (Associates)...

Daí, fazendo busca no Google, eu mesmo encontrei, em alguns dicionários, "filmação" (em português), "filmation" (em inglês) e "filmación" (em espanhol) [tudo isso com inicial minúscula...]!

A questão é: "filmação" já existe oficialmente como parte da língua portuguesa? E, caso sim, é um neologismo?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Em português, a palavra é possível, mas não a encontramos registada na maioria dos dicionários1 e, portanto, não parece de recomendar, até porque para designar o ato de filmar a língua já dispõe de filmagem.

Mas, em inglês, encontra-se o nome próprio Filmation, amálgama de film e animation e, como diz o consulente, denominação de uma empresa (1963-1989) que produzia quer filmes de imagem real, quer filmes de animação. Em espanhol, há registo de filmación (cf. dicionário da Real Academia Espanhola).

 

1 O dicionário de Caldas Aulete regista filmação, forma que, no entanto, prima pela ausência em todos os outros dicionários aqui consultados: Academia das Ciências de LisboaPriberam, Infopédia, Houaiss e Michaelis.

Pergunta:

Em uma frase nominal como "a duração do contrato de 2 anos", sabe-se, creio, que "do contrato", em relação com "duração", é um termo que exerce a função de adjunto adnominal.

Porém, hoje, peguei-me pensando que não sei qual é exatamente a função do termo composto que o procede, que é "de 2 anos", com relação a "do contrato" Isto é: relacionando-os, "do contrato" e "de 2 anos", poderemos dizer que este último é o adjunto adnominal do primeiro?

Neste caso, e em casos semelhantes, como fazer a análise?

Agradecida eu fico.

Resposta:

Tanto «do contrato» como «de dois anos» são complementos nominais.

Duração é nominalização do verbo durar, verbo que seleciona dois argumentos: um sintagma nominal coma função de sujeito («um contrato dura...») e um complemento não preposicionado de valor adverbial («um contrato dura dois anos»)1.

Sendo assim, pressupondo uma frase como «o contrato dura dois anos», a expressão nominal correspondente, com recurso ao substantivo duração, é «a duração de dois anos do contrato» (ordem que é preferível a «a duração do contrato de dois anos»).

Note que as expressões «de dois anos» e «do contrato» correspondem a complementos do verbo e, portanto, transpostos em associação com duração, são complementos nominais.

 

1 Ver "Os complementos dos verbos demorar e durar".

Pergunta:

Uma colega perguntou-me se conhecia a expressão «Pensas que sou da Lourinhã?», no sentido de «Pensas que sou estúpido?» ou «Pensas que sou parvo?». Desconhecia.

A mesma questão foi colocada por ela a vários outros colegas e a maioria conhecia a expressão.

Numa pesquisa breve na Internet encontrei uma explicação a que não sei se atribua crédito ou não e que radica a origem da mesma no desaparecimento, nos anos 30 do século passado, de um cão de grande porte de uma casa senhorial na Lourinhã, a que seguiram diversas mortes de ovelhas, coelhos e galinhas, falando-se mesmo em vitelos e até num burro, atribuídas ao cão. Havia quem lhe chamasse «a loba» ou «raposa». Deu-se caça ao animal e quando o mesmo foi abatido, constatou-se tratar-se «apenas de uma cadela». Ou seja, ter-se-á caído num logro. Alegadamente, a expressão terá advindo daí.

Podem, por favor, na medida do possível, confirmar a existência da expressão e a sua origem?

Obrigado.

Resposta:

A única informação aqui possível de obter é exatamente a mesma do consulente, ou seja, não se encontrou explicação cabal. Fica o registo.

Refira-se, mesmo assim, que é possível que haja ditos muitos parecidos com este agora em questão, que incluem topónimos com intuitos umas vezes jocosos outras deliberadamente ofensivos, a refletirem rivalidades regionais. É de lembrar que as relações entre os habitantes de localidades próximas, numa mesma região, podem ser do menos cordial que se possa imaginar. Muitas vezes a estratégia usada é a do insulto explícito ou velado, de tal maneira que, em português, como noutras línguas, se encontram ditos e provérbios muito pouco amigáveis – na verdade preconceituosos e difamatórios – sobre os habitantes de bairros, aldeias, vilas e cidades vizinhas.

Seguem-se dois exemplos, um provocador e outro particularmente acintoso:

«Mais vale uma rua do Porto que Gaia toda.» (na verdade, diz-se, usando a antiga partícula comparativa ca, intenção brejeira «ca Gaia toda»)

«Portimão, porta sim, porta não, para baixo é tudo de seguida.» (insinuando que grassa a prostituição feminina na cidade em causa – o que nunca terá sido o caso).

Acrescente-se também a conhecida pergunta «é de Braga?», que funciona como repreensão dirigida a quem deixa uma porta aberta e que se diz remontar à abertura de uma porta na muralha da cidade minhota, hoje conhecida como Arco da Porta Nova.

Pergunta:

Ultimamente tenho recebido muitas perguntas dos meus amigos que imigraram recentemente para Portugal e estão a tentar aprender a língua. De facto são muitas as dúvidas e poucas as fontes de informação.

Uma das questões mais confusas é o uso do artigo definido antes dos pronomes possessivos.

Por exemplo:

– Pedro, a Filipa é (tua/ a tua) irmã?

– Qual é (sua/ a sua) profissão?

Acho que as duas formas são aceitáveis, no entanto, sendo estas perguntas retiradas de um teste de português, acredito que haja “a resposta”.

Agradecia que me esclarecessem essa questão.

Resposta:

No português de Portugal, o possessivo é geralmente acompanhado de artigo definido:

(1) Já falei com o teu professor.

Depois do verbo ser, também se verifica este uso:

(2) Este senhor é o meu professor.

Em (2), diz-se que a pessoa em referência («este senhor») é a mesma pessoa que é «o meu professor», sugerindo que quem profere a frase só tem um professor.

Contudo, há também a possibilidade de omitir o artigo definido, com uma pequena diferença de significado:

(3) Este senhor é meu professor.

Em (3), indica-se que há outras pessoas que podem também ser «meu professor» ou «minha professora».

Trata-se, portanto, de um caso muito particular, que só se domina com algum tempo de prática de uso do português. Em todo o caso, não é um ponto essencial para a comunicação.

Quanto ao possessivo que ocorre na interrogação, não se trata de uma frase com o verbo copulativo ser, a forma normal em Portugal é a que associa o artigo definido ao possessivo:

(4) Qual é a sua profissão?

Há outras situações em que o artigo definido também se omite, mas são casos de expressões fixas, muitas vezes utilizadas no discurso escrito e oral mais formal:

(4) Esta casa está em meu nome. (ou seja, eu sou o proprietário oficial desta casa)

(5) Na conta do restaurante havia um erro a meu favor. (eu paguei menos do que devia)

Lembramos que, no Brasil, é mais frequente a omissão do artigo definido:

(6) Você conhece meu pai? (também o «meu pai»; em Portugal, a forma corrente é «o meu pai»)