Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Nos dicionários de português que tenho mais próximos não encontro o adjectivo sartorial. Sei que existe em espanhol e em inglês, derivado do latim sartorius. Será correcto utilizá-lo como neologismo em português, tendo em conta a sua raiz latina?

Resposta:

É correto o uso de sartorial.

Trata-se de adjetivo registado no Dicionário Houaiss, derivado sufixal de sartório (cf. laboratório, laboratorial), termo da área de anatomia usado como substantivo masculino, na acepção de «músculo longo e estreito situado na região anterior e  interna da coxa; músculo costureiro», ou como adjetivo, significando «designativo do músculo localizado na parte anterior da coxa» (edição em linha do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora). Não se pode dizer que sartório seja um neologismo, uma vez que a sua datação recua, pelo menos, a finais do século XIX (cf. Dicionário Houaiss, que refere atestação de 1899). Quanto a sartorial, o registo a que faço referência é de facto muito mais recente, pelo que se pode ainda considerar um neologismo. No entanto, a sua formação enquadra-se nos casos de formas vocabulares que ocorrem esporadicamente porque resultam da produtividade de certas regras e esquemas  linguísticos.

Em relação à etimologia destes termos, considera-se que sartório procede do latim científico sartorius, com o mesmo significado, por sua vez formado a partir do latim clássico sartor, ōris, «emendador, remendão», «do radical de sartum, sup[i]n[o] de sarcīre, "coser, remenda...

Pergunta:

Consultando as respostas que deram anteriormente, não fiquei esclarecido.

Em relação a iceberg, a primeira e a segunda respostas parecem-me contraditórias.

Quanto a baseball, nesta resposta fico sem saber como se pronuncia de acordo com a lexicografia portuguesa.

Afinal, como se escrevem e como se pronunciam em língua portuguesa, em Portugal, as palavras correspondentes a iceberg e baseball?

Resposta:

1. Aportuguesamento de iceberg

As respostas podem parecer contraditórias, mas refletem a insatisfação com a grafia do aportuguesamento de iceberg, já que, para o português, os lexicógrafos parecem esquecer-se de adaptar a correspondência entre a grafia i e a fonia [ai] deste empréstimo inglês quando registam icebergue. Deste modo, a resposta de Helena Pecante é uma crítica a essa prática, enquanto a de Fernando V. Peixoto da Fonseca se limita a dar conta do aportuguesamento oficial sem mais comentários. Por outras palavras, mantém-se o impasse, porque geralmente se pronuncia como "aicebergue" a palavra grafada icebergue (cf. Vocabulário Ortográfico do Português), muito embora no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa figure, a par da forma com ditongo [aj], outra não ditongada, "icebergue" (transcrição fonética [isɨˈbɛɾgɨ]).

2. Aportuguesamento de baseball

A resposta apresenta duas grafias que correspondem a pronunciações que se enquadram no conjunto de correspondências regulares entre grafia e fonia da ortografia do português. Assim, a forma basebol será articulada no português europeu como [bazɨˈbɔɫ], e beisebol, como [bɐjzɨˈbɔɫ]. 

 

N.E. – 

Pergunta:

Gostaria de saber o plural de «cartão jovem». Será «cartões jovens», ou «cartões jovem»?

Resposta:

Tendo em conta que, em Portugal, por «cartão jovem» se entende não um cartão que é jovem, mas, sim, um cartão que se destina a jovens, parece-me de recomendar o plural «cartões jovem». Considero, portanto, que jovem é aqui usado nas mesmas condições que certos nomes próprios como Visa em «cartão Visa», cujo plural é «cartões Visa». Noto, porém, que, dada a difusão deste documento, a expressão «cartão jovem» se tem consolidado como substantivo com referência autónoma, facto que me leva a sugerir a grafia não atestada "cartão-jovem".

Pergunta:

Qual é a função sintática dos elementos posteriores ao verbo reagir?

a) «Os alunos reagiram calmamente.»

b) «Os alunos reagiram calmamente ao que foi dito.»

O verbo reagir exige sempre complemento oblíquo?

Resposta:

O verbo reagir pode não exigir sempre complemento oblíquo. Por exemplo, usa-se intransitivamente, em certos contextos: «os manifestantes invadiram o recinto, e os guardas reagiram» (= os guardas intervieram).

Sendo assim, calmamente é um modificador tanto na frase a) como na b). Quanto a «ao que foi dito» em b), trata-se de um complemento oblíquo, como, aliás, a consulente aponta.

Pergunta:

Estou pesquisando uma dúvida e não encontro uma fonte fidedigna para comprovar minha opinião.

Trata-se da expressão «unica e exclusivamente», muito usada em textos jurídicos.

O termo única obviamente leva acento. Mas como na expressão «unica e exclusivamente» o -mente é suprimido para evitar a repetição (na verdade, deveria ser «unicamente e exclusivamente», razão pela qual o unica da expressão não leva acento), o termo unica acaba não sendo acentuado.

Revisores, clientes, colegas, etc. muitas vezes tendem a corrigir e colocam o acento no única na expressão.

Gostaria de receber uma fonte com a qual eu possa comprovar que o unica neste caso não leva acento.

Resposta:

O Acordo Ortográfico de 1990, tal como o de 1945 ou o Formulário Ortográfico de 1943, é omisso sobre o caso apontado, mas Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984, pág. 543), apresentam um exemplo que não confirma a opinião do consulente:

Quando numa frase dois ou mais advérbios em -mente modificam a mesma palavra, pode-se, para tornar mais leve o enunciado, juntar o prefixo apenas ao último deles:

Dir-se-ia que tudo naquele paraíso murado se movimentava lúdica e religiosamente.

(Miguel Torga, CM, 176)

Nesta citação, verifica-se que ludicamente passa a ter a forma lúdica, que é a respetiva base de derivação. Por conseguinte, na coordenação de advérbios de modo sufixados com -mente, a forma ou as formas que precedem a conjunção copulativa dispensam o sufixo, assumindo a grafia da base da derivação. Deste modo, está certo quem escreve única, em «única e exclusivamente».