Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Depreciação dos valores humanitários», ou «depreciação dos valores humanos»?

Resposta:

Pode dizer das duas maneiras, embora cada expressão tenha significados ligeiramente diferentes:

a) «valores humanitários»: visto que humanitário se refere ao que «promove o bem-estar do homem e o avanço das reformas sociais» (cf. Dicionário Houaiss), a expressão significa «valores que promovem o bem-estar do homem e o avanço das reformas sociais»;

b) «valores humanos»: em princípio, é equivalente a «valores do homem», num sentido muito genérico, mas trata-se de expressão que pode ser entendida em tantas aceções quantas as atribuíveis ao adjetivo humano [«relativo ao homem ou próprio de sua natureza», «composto por homens», «que não é divino», «que mostra piedade, indulgência, compreensão para com outra(s) pessoa(s)» — ver Dicionário Houaiss].

 

N.E. (agosto de 2021) — A confusão no emprego de  ambos os adjetivos voltou a ser recorrente com o regresso a poder dos talibãs no Afeganistão e o cenário subsequente em matéria dos direitos das mulheres, nomeadamente. Erradamente, por exemplo, quando se refere que a ONU alerta para crise humanitária no Afeganistão e certo quando se escreve 

Pergunta:

Qual o plural de situação-problema? Situações-problema, ou situações-problemas?

Resposta:

Muito depende do contexto e da intenção comunicativa, pois existem duas possibilidades para o plural de situação-problema:

a) situações-problema: trata-se de situações problemáticas.

b) situações-problemas: trata-se de realidades que são simultaneamente situações e problemas.

Penso que é mais frequente ocorrer a forma a), porque esta permite identificar um tipo de situação. Mas esta é uma questão que tem mais que ver com a congruência entre a linguagem e o mundo a representar por meio da mesma.

Sobre a relação semântica entre os elementos de um composto, já tive oportunidade de dar resposta, por exemplo, aqui.

Pergunta:

Um especialista em cogumelos, para além de micologista ou micólogo, pode ser nomeado como micetólogo ou micetologista?

Resposta:

Pode. Micetólogo e micetologista são palavras dicionarizadas como sinónimos de micólogo e micologista (cf. Dicionário Houaiss e Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). Integrando os mesmos elementos de composição que micetólogo e micetologista, existe micetologia, também registado como sinónimo de micologia, «estudo dos fungos» (Dicionário Aulete Digital).

Note-se que o elemento micet-, que ocorre em micetologia, é uma forma alternativa do elemento mico- de micologia: com efeito, ambos os elementos, frequentes nas terminologias das biociências e fisiociências do século XIX (Dicionário Houaiss), provêm do grego múkēs, ētos, «cogumelo, fungo, excrescência assemelhável» (idem).

Pergunta:

Tenho duas dúvidas em relação à seguinte frase: «O Sindicato, junto com os trabalhadores, reuniu-se com a diretoria da empresa.»

Primeiro, a expressão «junto com» é redundante? Não deve ser usada?

Segundo, o verbo fica no singular, ou deve ir para o plural?

Resposta:

1. «Junto com»

A locução pode ser redundante, mas o certo é que se encontra registada em vários dicionários. Por exemplo, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, figura como subentrada de junto, com o sentido de «juntamente», «simultaneamente». Também no Dicionáro Unesp do Português Contemporâneo se atesta o uso de «junto com»: «– Quero morrer junto com você, disse a moça transtornada.»; «Junto com a bebida derramada, o suor empapava-lhe a camisa.» Nos exemplos transcritos, embora ao primeiro se possa atribuir características do discurso popular, não se reconhece o mesmo tipo de registo no segundo. Deste modo, não vejo que a locução esteja incorreta, até porque a redundância nem sempre é critério de correção, podendo até ser aceite por questões de ênfase.

2. Concordância

Tendo em conta que «junto com» é, muitas vezes, o mesmo que com, como sucede na frase em questão, a concordância com um sujeito composto, que inclua tal construção, deve fazer-se conforme descreve Evanildo Bechara na sua Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora, Lucerna, 37.ª edição, pág. 556; itálico do original):

Se o sujeito no singular é seguido imediatamente de outro no singular ou no plural mediante a preposição com, ou locução equivalente, pode o verbo ficar no singular, ou ir ao plural para realçar a participação simultânea na ação:

"El-rei, com toda a corte e toda a nobreza, estava fora da cidade, por causa da peste em que ...

Pergunta:

Ficaria muito agradecida se me ajudassem a analisar sintaticamente a frase: «Ele garantiu um lugar de destaque na história nacional.»

O complemento circunstancial é temporal, ou de lugar? O predicado verbal engloba também o complemento circunstancial? Estou confusa...

Resposta:

As perguntas feitas parecem ainda enquadrar-se na tradição da análise gramatical praticada em Portugal até há alguns anos. Note-se, porém, que mais recentemente neste país, no âmbito dos ensinos básico e secundário, é o Dicionário Terminológico (DT) que vigora como instrumento auxiliar do ensino da gramática.

1. O constituinte «na história nacional» é de facto um complemento circunstancial de leitura ambígua, porque pode ser interpretado tanto locativa como temporalmente:

a) «na história nacional»: «na narrativa do passado de um país»

b) «na história nacional»: «no passado de um país»

Mas não é necessário que a consulente se sinta confusa ou preocupada. A ambiguidade ocorre frequentemente português, como noutras línguas.

2. Quanto à segunda questão, era também tradicional considerar que o predicado verbal incluía o verbo e os seus complementos, não abrangendo os complementos circunstanciais. Atualmente, seguindo o DT, considera-se que o predicado engloba o verbo com os seus complementos e modificadores.