Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase escrita no Público online: «Para dentro do perímetro policial foram arremessadas garrafas de vidro e cartões vermelhos, que simbolizam a vontade das pessoas em mandar o Governo para a rua», lê Helena Matos (aqui) que as garrafas simbolizam a vontade das pessoas em mandar o Governo para a rua. Atendendo à posição da vírgula na frase, esta é a leitura correcta? Ou podemos admitir, como terá sido vontade do jornalista, que apenas os cartões são símbolo? Caso esteja correcta a leitura de Helena Matos, como poderia o jornalista ter evitado essa leitura usando semelhante número de palavras?

Obrigado.

Resposta:

Tal como está construída, a frase tem uma construção relativa que é ambígua: o que simboliza a vontade das pessoas? Só os cartões, ou também as garrafas? Pelo conhecimento que temos do mundo (o cartão vermelho é ordem de expulsão do jogo), somos capazes de dizer que a expressão «cartões vermelhos» é que determina a referência do pronome relativo que. Será talvez esta a leitura pretendida por quem escreveu a frase. Mas, visto o pronome que remeter para uma pluralidade, como  aponta o verbo da oração relativa («simbolizam»), e o constituinte «garrafas de vidro» estar coordenado com «cartões vermelhos», toda a estrutura de coordenação «garrafas de vidro e cartões vermelhos» pode ser também tomada globalmente como antecedente desse pronome relativo, juntando assim uma nota de violência física, como passagem ao ato, dificilmente conciliável com a natureza mental do símbolo. Sendo assim, interpretada no contexto da agitação social que se verifica em Portugal em consequência da crise financeira, essa ambiguidade frásica, provavelmente não intencional, pode ser aproveitada com intuito polémico, no sentido de implicitamente acusar a notícia de escamotear a gravidade de certos atos lesivos da integridade física de outrem; com efeito, o ato de arremessar garrafas passa paradoxalmente por símbolo, quando na verdade se trata de um meio de agressão bem concreto, usado com a finalidade de atingir as forças policiais.

Seria, pois, melhor dar outra redação à frase, de modo a evitar a referida ambiguidade; por exemplo:

«Para dentro do perímetro policial foram arremessadas garrafas de vidro e atirados cartões vermelhos, estes como símbolo da vontade das pessoas em mandar o Governo para a rua.»

Pergunta:

Agradeço informação sobre a forma correcta de grafar as seguintes palavras: leucopoese/leucopoiese, eritropoese/eritropoiese, trombopoese/trombopoiese. Procurei algumas na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e, para meu espanto, constatei nela constarem apenas leucopoese e eritropoiese...

Resposta:

O segundo elemento dos termos apresentados tem duas formas, ambas corretas: -poese e -poiese, com origem no grego clássico poíēsis, eōs, «"criação; fabricação, confecção; obra poética, poema, poesia", através do lat[im] poēsis, is "poesia, obra poética, obra em verso"» e que «ocorre em cultismos do s[éculo] XIX em diante, como galactopoese, hematopoiese/hematopoese, leucopoiese/leucopoese, onomatopoese (Dicionário Houaiss, s. v. -poese). Dois dicionários médicos publicados em Portugal, o Dicionário de Termos Médicos (Porto Editora), de Manuel Freitas e Costa, e o Dicionário Médico, de L. Manuila et al. (Lisboa, Climepsi Editores, 2004; adaptação e revisão da edição portuguesa de João Alves Falcato), registam só as formas que contêm -poiese, permitindo concluir que, pelo menos, entre médicos portugueses, se prefere leucopoiese (ou leucocitopoiese), eritropoiese e trombopoiese.

Pergunta:

Qual a origem do topónimo cabo Espichel?

Resposta:

José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, avança a hipótese de Espichel ser um diminutivo moçárabe que, acabando em -el, deriva de espicho, «sugerido pela forma do cabo». Note-se que a palavra espicho tem, entre outras aceções, as de «orifício aberto no tampo de barril ou tonel» e «pedaço de madeira aguçado com que se veda esse buraco», sendo-lhe ainda atribuída a variante espiche. José Pedro Machado quer, portanto, dizer que o nome deste cabo do litoral português tem origem no uso metafórico da palavra espicho ou espiche, de modo a aludir ao modo como certo ponto da costa portuguesa toma forma aguçada, penetrando no mar. Acrescente-se que a terminação -el de muitos topónimos no Centro e no Sul de Portugal (Portel, Pinhel, Alportel, Beringel) parece corresponder etimologicamente ao sufixo diminutivo latino -ellus, que em palavras de tradição galego-portuguesa ocorre como -elo (Portelo, castelo, cutelo, capelo; cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostaria de um esclarecimento quanto ao uso dos advérbios menor (ou maior) e menos (ou mais), quando se referem a substantivos abstratos, a saber empenho, acesso, trabalho. É correto dizer, por exemplo, que «a tarefa demandou menor empenho por parte dos empregados», ou o correto seria «menos empenho»?

Obrigada.

Resposta:

As duas construções estão corretas. Pode-se empregar mais e menos ou maior e menor com nomes não contáveis e abstratos: «mais/menos empenho, acesso, trabalho»1; «maior/menor empenho, acesso, trabalho». Neste caso, as formas mais e menos são classificadas como pronomes adjetivos indefinidos no Brasil (cf. Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959 e E. Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 169).

Em Portugal, parece não haver a tradição de classificar mais e menos também como pronomes, determinantes ou quantificadores, a julgar pela sua ausência entre os pronomes indefinidos nas gramáticas tradicionais (por exemplo, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, págs. 356-366) ou entre os quantificadores existenciais no Dicionário Terminológico (DT). No entanto, mais e menos associados a substantivos correspondem à definição dos quantificadores existenciais apresentada no DT, uma vez que, à semelhança de muitos e poucos, são empregados «para expressar uma quantidade [...] relativa a um valor considerado como ponto de referência» (idem; exemplos da fonte consultada):

(1) «Vários alunos faltaram ao teste. (Uma quantidade não precisa de alunos faltou ao teste)»

(2) «Muitos alunos faltaram ao teste. (O número de alunos que faltaram ao teste é superior à quantidade média).»

A diferença no uso de mais e menos reside no...

Pergunta:

Qual é a palavra correta para designar o efeito do carma: efeito cármico, ou carmático? E ainda no caso da primeira palavra, cármico, usa-se, ou não, o acento agudo?

Resposta:

Com o significado de «relativo a carma», só se regista cármico nos dicionários consultados (Dicionário Houaiss, iDicionário Aulete, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). O iDicionário Aulete acolhe também carmático, mas aplicável apenas a «[...] uma escrita arábica, em que se não empregam pontos diacríticos nem sinais vocálicos», definição duvidosa, porque não confirmada por outros dicionários.

Refira-se ainda que carma é, «[n]o hinduísmo e no budismo, lei segundo a qual o homem está sujeito à causalidade moral, e portanto todas as ações, sejam elas boas ou más, geram reações correspondentes que retornam àquele que as praticou nesta vida ou em encarnações futuras e determinam o seu aperfeiçoamento ou sua regressão» (iDicionário Aulete).

Por último, assinale-se que todas estas palavras se escrevem com inicial minúscula. Só o substantivo carma pode eventualmente exibir maiúscula inicial, por exemplo, em contextos em que se pretenda dar ênfase à palavra por razões religiosas ou filosóficas.