Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É correcto «Bacalhau à Conde», ou é melhor «Bacalhau ao Conde» (receita)?

Resposta:

Em princípio, será «à Conde», querendo com esta expressão dizer «à moda do Conde». Note que se diz «bacalhau à lagareiro» (e não «"ao" lagareiro»), «bacalhau à Zé do Pipo» ( e não «"ao" Zé do Pipo»), «bife à Marrare» ( e não «"ao" Marrare»).

Pergunta:

Na resposta saída no Facebook correspondente à palavra escâner, diz-se que o aportuguesamento será a melhor opção. Pois bem, o problema é que, no falar brasileiro, todas as palavras iniciadas por s seguidas de outra consoante são faladas ao modo italiano, daí falarem "escâner". Então, pessoalmente, não considero que seja anglicismo mas, sim, abrasileiramento misturado de italiano [...].

Obrigado.

Resposta:

Não é, a rigor, um abrasileiramento. É verdade que, para a maioria dos falantes do português europeu, é hoje possível pronunciar "scâner" sem articular um e inical nem chiar o s, tal como diz "ski" a par de "esqui". Contudo, a adição de um e à sequência de s + consoante, em começo de palavra, é antes uma tendência que vem do português antigo e perdurou até recentemente (SCHOLA > escola; SPATIU > espaço; STARE > estar). A ortografia reflete este fenómeno, e o português brasileiro ainda o conserva, mas o português europeu-padrão parece a estar a perdê-lo, visto esse e inicial cair frequentemente: escola passa a "chcola", espaço, a "chpaço", e estar, a "chtar", e até, no registo informal, "tar" (este último caso também se verifica nos falares brasileiros). Note-se que, na sua evolução, o espanhol apresenta o mesmo fenómeno, que está bem vivo nas suas variedades, como o comprovam a adição de um e a nomes ingleses começados por s + consoante (p. ex., Springsteen > "espringteen"). Observe-se, contudo, que nada disto aconteceu nem acontece em italiano: SCHOLA > scuola; SPATIU > spazio; STARE > stare.

Pergunta:

Trago à vossa consideração duas questões.

QUESTÃO 1: Estabelecendo a Base XV do novo Acordo Ortográfico (AO) que se emprega o hífen «nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas», não deveriam todas as palavras que designam espécies de maçãs (por exemplo, maçã-reineta) ser hifenizadas? Não encontro nenhuma palavra que designe espécies de maçãs no VOP (nem de peras: pera-rocha, pera-acabate, etc.). Qual a diferença em relação a feijão-verde (que nem umaespécie é…), batata-semente, couve-roxa, couve-galega ou abóbora-menina?

QUESTÃO 2: Relativamente aos pontos cardeais, diz o novo AO que se usa maiúscula «Nos pontos cardeais ou equivalentes, quando empregados absolutamente: Nordeste, por nordeste do Brasil, Norte, por norte de Portugal». Já a Convenção de 1945 diz que «Os nomes dos pontos cardeais e dos pontos colaterais (…) recebem, por excepção, a maiúscula, quando designam regiões: o Norte do Brasil; os mares do Sul; os povos do Oriente».

Tenho alguma dificuldade em interpretar o «absolutamente»… A noção de região esbate-se com o novo AO?

1. «Vou para o Norte, mas a minha mulher ficou no Sul… No sul de Espanha, devo acrescentar!»

As maiúsculas/minúscula parecem indiscutíveis.

2. «Vou para norte.» / «Viramos para sul.» / «Siga a direção norte!» / «Meca fica a leste.»

As minúsculas são adequadas? Se sim, como explicar a questão do «absolutamente»?

Finalmente, na generalidade dos guias diz-se que os pontos cardeais se e...

Resposta:

1. Na aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) o critério adotado tem sido usar hífen em todos os compostos que designam espécies botânicas e animais, mesmo que ao referente dessas designações falte uma conceptualização científica. Por consequência, deve-se escrever maçã-reineta, pera-rocha, pera-abacate, feijão-verde, batata-semente, couve-roxa, couve-galega, abóbora-menina.

2. Há de facto, como bem observa o consulente, uma diferença em relação ao Acordo Ortográfico de 1945 (AO 45), que é introduzida pela ocorrência de «absolutamente» e pelos exemplos dados, os quais
levam a distinguir pontos cardeais que designam regiões mas que ocorrem com complemento («sul de Espanha», «norte de Portugal», por oposição a «o Sul» e «o Norte»). Recorde-se que se escrevia «no Sul de Espanha» e «Norte de Portugal», de harmonia com a Base XLI do Acordo Ortográfico de 1945, na qual se lê: «Os nomes dos pontos cardeais e dos pontos colaterais, que geralmente se escrevem com minúscula inicial, recebem, por excepção, a maiúscula, quando designam regiões: o Norte do Brasil; os mares do Sul; os povos do Oriente; as terras do Levante; o Ocidente europeu; o Noroeste africano; a linguagem do Nordeste.»

3. Os guias que apresentam maiúscula inicial nos nomes dos pontos cardeais que designam regiões mas não são usados "absolutamente" afastam-se de facto do AO 90 e seguem o AO 45.

Pergunta:

Em documentação do século XVIII encontrei com muita frequência o termo «priostato da freguesia...». Será que é o mesmo que «priorado da freguesia...»?

Obrigado.

Resposta:

A palavra está registada como priostado no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, como «cargo ou função de prioste».

Um prioste é um arcaísmo que se refere, «em épocas antigas, [ao] cobrador de rendas eclesiásticas» (Dicionário Houaiss). Não se trata, portanto, do mesmo que prior, nem priostado é equivalente a priorado.

A palavra tem origem no «francês antigo pre(v)ost (sXII, prévot 1828), "nome de diversos magistrados e oficiais civis", forma divergente de preboste e de preposto, do latim praepositus, "preposto", substantivação de praeposĭtus, a, um particípio passado de praeponere, "prepor"».

Pergunta:

Qual o significado e a origem da expressão «fazer a cama», que se aplica a certa pessoa que quer prejudicar outra de alguma maneira? Obrigado!

Resposta:

Não é possível identificar as cirscunstâncias históricas que rodearam a génese desta expressão, mas pode presumir-se que se trata de uma metáfora e uma ironia:

– a situação embaraçosa ou difícil criada a alguém é vista ironicamente como uma cama onde, ao contrário do que se poderia esperar, não se encontra repouso – em suma, «cama» está em lugar de armadilha;

– a "cama" pode ter também caráter erótico e aludir à sedução eventualmente exercida sobre a pessoa que caiu na armadilha.

A expressão «fazer a cama» está registada no Dicionário Houaiss (s. v. cama): «fazer a c. de ou a. Uso: ironia. causar problemas ou provocar situação embaraçosa para alguém, esp. como vingança ou castigo. Ex.: fez a c. do rival, impedindo-o de obter a nomeação.»