Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Precisava que me esclarecessem sobre o significado de uma expressão idiomática do português.

O que significa «puxar o pé para a chinela»?

Obrigada.

Resposta:

A expressão «puxar-lhe o pé para a chinela» ou «... para o tamanco» significa «ter tendência a ser ordinário», segundo Orlando Neves, no seu Dicionário de Expressões Correntes, Lisboa, Diário de Notícias, 2000. Guilherme Augusto Simões (Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, Edições D. Quixote, 1993) igualmente regista esta expressão, ao mesmo tempo que acolhe «fugir o pé para a chinela» com o mesmo significado. Observe-se que «puxar o pé para» significa genericamente «sentir-se atraído», conforme também regista Orlando Neves (idem).

Pergunta:

Num texto de cariz médico, deverei usar «identificação de anomalias», ou «identificação de anormalidades»?

Agradeço a atenção.

Resposta:

Depende muito do tipo de realidade médica que pretende referir.

Anomalia está registado no Dicionário de Termos Médicos, de Manuel Freitas e Costa, com o significado de «diferença em relação ao que se considera normal» (do grego anōmalía, «desigualdade»). Há depois vários termos médicos que incluem anomalia: anomalia de Alder, anomalia de Neuhauser, anomalia de Rayleigh, anomalia de Uhk, anomalia de Undritz (cf. idem). Verifica-se ainda que anomalia ocorre abundantemente na rede, em sítios de divulgação de cuidados de saúde; ex.:

(1) «Nos 2 tipos de exame de Papanicolau, o laboratório analisa ao microscópio as células nas lâminas para detecção de quaisquer anomalias» (InfoCancro).

(2) «Se o risco de ter um filho com uma anomalia genética ou cromossómica for elevado, podem-se fazer testes antes do nascimento (diagnóstico pré-natal)» (Manual Merck – Manual Médico Online).

Anormalidade parece usar-se muito menos, mas o já citado Dicionário de Termos Médicos regista-o como sinónimo de anomalia. No entanto, é de notar que é muito frequente o adjetivo anormal em textos do âmbito da medicina.

Pergunta:

Relativamente à [palavra grega] peripéteia (mudança repentina de fortuna), qual é o adjectivo de peripécia? "Peripeciano", "peripeteico"? O que define estas terminações? Há algum padrão?

Resposta:

Os adjetivos em apreço não se encontram registados nos dicionários gerais de português consultados, nem nos de outras línguas próximas da portuguesa, como sejam o espanhol e o italiano. Mesmo assim, dado a palavra se relacionar com outra, peripécia, que aparece na língua portuguesa como cultismo com origem em peripéteia, do grego antigo, afigura-se legítimo usar a forma grega como base para formar "peripeteico", tal como é sugerido na pergunta. Note-se que em páginas da Internet se encontra o espanhol peripeteico.

Pergunta:

As palavras taquicardia e bradicardia surgem na maioria dos dicionários como paroxítonas. No entanto, são muitas vezes usadas na terminologia clínica como proparoxítonas, na maioria das vezes oralmente. Posto isto, há alguma evolução da língua que permita o seu uso com acentuação esdrúxula ("taquicárdia" ou "bradicárdia")?

Obrigado.

Resposta:

Taquicardia e bradicardia, que se pronunciam com acento tónico na sílaba -di-,são as formas corretas e as únicas registadas quer nos dicionários gerais quer nos vocabulários ortográficos. Contudo, é verdade que no uso se observam oscilações na fonia e na grafia do elemento -cardia, conforme se comenta no Dicionário Houaiss, s. v. -cardia:

«pospositivo, do gr. kardía, as, "coração" (tomado como se no voc. houvesse o suf. -ia, formador de subst. abstr.), em compostos da terminologia médica, quase exclusivamente do sXIX em diante: acardia, aclistocardia, atelocardia, baticardia, bradicardia, embriocardia, estenocardia, taquicardia; [...] a pronúncia -cardia () tende a estabilizar-se na língua de cultura, embora haja áreas regionais cultas ou segmentos sociais cultos que vacilem (-cárdia

As formas "taquicárdia" e "bradicárdia", não aceites pela norma, parecem dever-se a analogia do elemento -cardia com o elemento -cárdio, que se depreende do adjetivo grego perikárdios, on, «que está em volta do coração», e apresenta a variante -cárdia, formando pares como bucárdio/bucárdia, isocárdio/isocárdia e venericárdio/venericárdia (idem). Observe-se que, em espanhol, existem as formas etimologicamente correspondentes taquicardia e bradicardia, mas ambas com o acento tónico na sílaba -car.

Pergunta:

Seria possível esclarecer-me se as seguintes palavras se escrevem com hífen ou sem hífen:

meta-crítico; meta-reflexão; meta-análise; metacognitivo; metanarrativo; metadidáticas; metapráxica?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A forma meta, como elemento de formação de palavras, é considerada um prefixo e, como tal, o novo acordo ortográfico prevê que só se use hífen quando o elemento seguinte começa por a ou h; ex.: meta-aprendizagem; meta-história. As palavras em questão escrevem-se, portanto, assim:

metacrítico, metarreflexão, meta-análise, metacognitivo, metanarrativo, metadidáticas e metapráxica.

No contexto do anterior acordo, o de 1945 (AO 45), o prefixo em referência aglutina-se sempre ao elemento seguinte, conforme prevê Rebelo Gonçalves, no Tratado da Ortografia Portuguesa (1947, pág. 76). Assim, entre as palavras acima indicadas, uma teria forma diferente à luz do AO 45: trata-se de metanálise, uma vez que se considera que o a de meta podia ser omitido na aglutinação ao elemento seguinte [cf. entrada met(a) – no Dicionário Houaiss].

Observe-se, contudo, que a forma metanálise se especializou como termo linguístico, na aceção genérica de «segmentação não etimológica de um vocábulo, locução ou enunciado, que foram interpretados pelos falantes de forma diversa daquela determinada por sua origem» (Dicionário Houaiss). Sendo assim, e voltando à aplicação do AO 90, se o termo se fixou com essa forma, parece agora descabido reanalisá-lo de modo a inserir um hífen. Trata-se de um caso a ponderar por quem...