Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «é por ela ser simpática que lhe dou o bolo», porque é que usamos o pronome de objeto no masculino? Porque é que não dizemos «é por ela sê-la»?

Muito obrigada pelo vosso trabalho.

Resposta:

O pronome o usa-se para referir um predicativo do sujeito ou uma oração. Nesse caso, tem valor demonstrativo:

(1) «A Joana era feliz e foi-o durante muito tempo.»

(2) «A Joana disse que se demitia e fê-lo logo a seguir.»

Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 340) observam que «[...] no singular masculino, [o] equivale a "isto", "isso", "aquilo", e exerce as funções de objeto direto ou de predicativo, referindo-se a substantivo, a um adjetivo, ao sentido geral de uma frase ou de um termo dela: "O valor de uma desilusão, sabia-o ela" (Miguel Torga [...]); "não cuides que não era sincero, era-o" (Machado de Assis [...]); [...] "Ser feliz é o que importa/ Não importa como o ser!" (Fernando Pessoa [...]).»

Pergunta:

Gostaria de saber o porquê de as formas verbais é e és serem acentuadas. Em qual regra estão enquadradas?

Resposta:

Os acordos ortográficos (incluindo o Acordo Ortográfico de 1990) não referem as formas em apreço, mas a acentuação de é e és enquadra-se, por exemplo, no mesmo caso de hás, referido na Base XLIII do Formulário Ortográfico de 1943 (que foi a norma ortográfica no Brasil até 2009):

«1.ª – Assinalam-se com o acento agudo os vocábulos oxítonos que «terminam em a, e, o abertos, e com o acento circunflexo os que acabam em e, o fechados, seguidos, ou não, de s: cajá, hás, jacaré, pés, seridó, sós, dendê, lês, pôs, trisavô, etc.»

Este preceito não sofre alteração com o novo acordo.

Pergunta:

«Composto por deputados ao parlamento», ou «composto por deputados do parlamento»?

Obrigada!

Resposta:

A rigor, deputado, como sinónimo de enviado, constrói regência com a preposição a: «deputado ao parlamento». No entanto, também se aceita a preposição de, encarando como uma relação de pertença a situação de o deputado ser membro de um conjunto mais vasto, por exemplo, uma assembleia ou um parlamento: «deputado do parlamento». É, aliás, o que se regista em subentrada, no artigo correspondente a deputado do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, com a apresentação das duas possibilidades: «deputados da/à Assembleia da República».

Pergunta:

Tenho muitas dúvidas sobre a distinção entre complemento do nome e modificador de nome restritivo. O antigo complemento determinativo levanta-me muitas questões. Qual é a diferença entre «de barba» em «o rapaz de barba é meu aluno» e «de livros» em «a oferta de livros às bibliotecas escolares é importante»? Por outro lado, qual é a diferença entre «baleeira» em «a pesca baleeira tem vindo a aumentar» e «frescas e coloridas» em «adoro flores frescas e coloridas»?

Devo classificar sintaticamente a expressão «do filme» em «a realização do filme foi um processo dispendioso» como complemento do nome e «azul» em «a camisola azul é a mais bonita» como modificador do nome restritivo?

Resposta:

O tema em apreço não é fácil, porque envolve vários critérios para a distinção de complementos e modificadores nominais. De qualquer modo, parece-me que o critério mais simples e seguro será considerar que selecionam um complemento (isto é, que têm um argumento)1 os substantivos que têm correspondência semântica e morfológica com verbos (p. ex., oferecer/oferta, ou realizar/realização, ou ainda pescar/pesca)2. Logo, «de livros», «baleeira» (equivalente a «da baleia») e «do filme» são complementos nominais em, respetivamente, «oferta de livros», «pesca baleeira» (ou «pesca da baleia») e «a realização do filme». Em todos os outros casos, temos modificadores, porque nem os substantivos modificados mantêm relação com verbos nem as expressões que os especificam são argumentos: «o rapaz de barba», «flores frescas e coloridas», «a camisola azul».

1 Em análise sintática e semântica, argumento significa, «na oração, cada um dos termos requeridos por uma palavra que exerce predicação, em relação com sua função sintática (p. ex., para o verbo dar em "Carlos deu o livro a Maria" há três argumentos: um agente [sujeito], um tema [objeto direto] e um alvo [objeto indireto]: chorar em "Marta chorou" requer apenas um argumento: um agente [sujeito])» Nomes e adjetivos também podem selecionar argumentos: «a construção [da casa]», «(estar) desejosa [de doces]» (Dicionário Houaiss, 2001).

2 Para outro tipo de nomes que também selecionam complementos, consultar O complemento e o modificador restritivo d...

Pergunta:

Venho por este meio solicitar o vosso auxílio no sentido de precisar a definição de futurante.

Grato pela vossa atenção.

Resposta:

O adjetivo futurante é uma palavra legítima. Apesar de não se encontrar registado nos dicionários consultados, muito embora os mesmos acolham o verbo futurar, usado nas seguintes aceções, segundo o Dicionário Houaiss: «transitivo direto 1 admitir hipoteticamente; conjecturar, supor: Ex.: "de onde futurava tais hipóteses?"; transitivo direto, transitivo indireto e intransitivo 2 imaginar o que ainda não aconteceu; antever, prenunciar, prognosticar; ex.: "lá estava o profeta futurando em meio a uma atenta multidão"; intransitivo 3 mostrar bom agouro; ex.: "de índole confiante, passava a vida a futurar".»

A atestação do verbo futurar legitima a formação de futurante, adjetivo que se refere àquilo que é visto como conjetura ou como facto potencial.