Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em inglês, one pode ser utilizado como pronome, e, em espanhol, uno e una também podem ser utilizados como pronomes.

Creio valer a mesma coisa para um e uma, em português, ou me equivoquei?

No caso, seria (ou será...) usado para indicar «alguém», indefinido, indeterminado ou inespecífico. Ou não é bem assim afinal?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

Em português, não se costuma usar um com o significado de «alguém».

Não quer isto dizer que não seja impossível, por exemplo, em certos textos mal traduzidos.

No entanto, mais corrente parece a expressão «uma pessoa», pelo menos, no português de Portugal:

(1) «Uma pessoa fica espantada com as notícias.» = alguém fica espantado.../ficamos espantados...

Acrescente-se que mesmo do ponto de vista histórico o uso de um com o significado de «alguém» é considerado um estrangeirismo, como observou o gramático brasileiro Said Ali (1861-1953), na sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa (Edições Melhoramentos, 1965, p. 117; mantém-se a ortografia do texto citado pelo autor):

«Exemplos de um na acepção de "alguém" não são raros na Nova Floresta [N. Flor.] de [Manuel] Bernardes [1644-1710]. Mas como dificilmente se encontra o indefinido com tal significação em escritores anteriores, parece antes que o seiscentista se utilizou de um estrangeirismo (cf. o uso do italiano uno), o qual não conseguiu aclimar-se em nossa língua:

"Quanto hum he mais pobre, tanto tem menos parentes (N. Flor. 1, 259) – Não he por certo esta a humildade que o Padre Affonso Rodrigues chama de garavato, que he dizer hum males de si proprio, para que os ouvintes acudam por elle (ib. 5, 272) – Avisa o Espírito Santo que não queira ser hum ser juiz, senão sente em si virtude poderosa para contrastar iniquidades (ib. 5, 269)."»

<i>Mortandade</i>, <i>morticínio</i> e <i>genocídio</i>
A propósito de massacres no conflito Israel-Hamas

A sinonímia parcial entre mortandade, morticínio e genocídio bem como a relação destas palavras com massacre dão matéria para este apontamento do consultor Carlos Rocha.

Pergunta:

Tenho uma dúvida de utilização do termo natural e residente, a saber:

1. Qual está mais correto, «natural dos Calvos, ou natural de Calvos»?

2. «Residente nos Calvos», ou «residente em Calvos»?

Resposta:

Depende do uso e história locais, e, portanto, a resposta não pode ser perentória. Muitas vezes convivem os dois usos, com artigo definido e sem ele, com funções diferentes, como parece ser o caso de Calvos.

Se se refere o topónimo Calvos, que identifica uma localidade da freguesia de Sarzedas, no concelho de Castelo Branco, não foi possível obter informação direta para a elaboração desta resposta. O que se conseguiu apurar baseia-se em consultas na Internet, as quais, mesmo assim, podem ser elucidativas. Verifica-se, por exemplo, que quando se trata de referir endereços e associar a povoação à vida administrativa da freguesia, se escreve o nome sem artigo definido:

(1) «Número doze: prédio urbano, sito em Calvos, na freguesia de Sarzedas, concelho de Castelo Branco, que se compõe por um edifício de r/chão e 1.º andar [...] ("Cartório Notarial – Castelo Branco [...], Justificação", Gazeta do Interior, 16 de dezembro de 2015, p. 4)

No entanto, um cronista local, provavelmente mais conhecedor dos usos correntes, junta o artigo definido ao topónimo:

(ii) «Talvez pelo que vejo e sinto nos Calvos e em outras “terreolas” das freguesias de Sarzedas e de Santo André das Tojeiras [...].» (João Lourenço Roque, "Digressões Interiores: Olha a laranjinha que caiu caiu…", Reconquista, 22/07/2023 )

Saber se um uso é mais correto do que o outro será uma questão de perceber qual poderá ser a motivação deste topónimo. Uma pesquisa preliminar aponta para duas hipóteses:

– o topónimo tem origem no substantivo comum calvo, que pode significar «terreno árido numa elevação»;...

Pergunta:

Qual é, afinal, o gentílico do Acre (estado)?

"Acreano"? Ou "acriano"?

E por quais razões é a versão atual e oficial dele?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Embora nos dicionários haja registo de acreano, esta forma é sempre remetida para acriano, pelo que esta última é preferível.

Em derivados de nomes próprios, incluindo nomes geográficos como é o caso, emprega-se -iano, de acordo com o seguinte critério, enunciado no Dicionário Houaiss (edição de 2001; mantém-se a ortografia original):

«[...] a partir de 1911, pelo menos, vem impondo-se, no âmbito da língua de cultura, a regra segundo a qual só se escreverá -eano quando a sílaba tônica do derivante for um -e- tônico ou ditongo tônico com base -e- ou, por fim, em que, mesmo átono, o -e- for seguido de vogal átona: arqueano (Arqueu), cuneano (Cuneo/Cúneo), daomeano (Daomé), egeano (Egeu), galileano (Galileu), lineano (Lineu); os demais serão sempre em -iano – acriano, camiliano, ciceroniano, eciano, freudiano, zwingliano etc. [...].»

Como se pode ler, recomenda-se, portanto, que se escreva acriano, com i.

Pergunta:

O termo «o que você é meu» utiliza-se?

Sei que no Brasil se utiliza para definir o que alguém é a outra pessoa do tipo:

«O que és para mim?»

«Amigo, namorado, etc.»

Mas mesmo no português do Brasil isto está correto?

Esta frase não parece fazer muito sentido em termos semânticos, e já me disseram que esta frase está correta.

Resposta:

A expressão em apreço não tem tido registo em Portugal, pelo menos, não até agora.

Uma construção corrente em Portugal é seguinte:

(1) «O que me é/és a mim?»

Não se encontrando registo da construção «o que você é meu» em fontes mais convencionais, como sejam dicionários (mesmo os mais atualizados) e gramáticas, o mais que se consegue apurar provém de páginas da Internet (ver aqui). A conclusão de tal consulta é que a expressão ocorre em algumas páginas do Brasil ou relacionáveis com este país, sempre num contexto de comunicação informal.

 

N. E. (25/10/2023) – A expressão «o que você é meu» será bastante mais corrente entre falantes brasileiros do que um consulta de páginas da Internet pode levar a pensar. Sobre o assunto, agradece-se uma observação do consultor Luciano Eduardo de Oliveira.