Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tendo analisado várias obras de referência (Mateus na sua Gramática de 2003 e Barbosa em Études de phonologie portugaise, entre outras), às quais pude ter acesso, verifica-se o abaixamento de [e] e [ej] resultando em [ɐ(j)] antes de consoantes palatais [ɲ, ʎ, j, ʒ, ʃ], surgiu-me a seguinte dúvida:

Esta transformação também se aplica ao verbo mexer, conjugado na 1.ª pessoa do singular, i.e. «eu mexo» [ˈmɐ(j)ʃu], quase igualando-se, a «o fecho», [ˈfɐ(j)ʃu]) e ocorrendo na elocução rápida dos verbos como descer, crescer e derivados (i.e. 'eu desço' [dɐ(j)?ʃsu] coincidindo com 'eu deixo') e, além destas, na palavra 'mesmo' onde o /e/ fechado também está em contacto com o [ʒ]? (Embora este último esteja transcrito [ˈmeʒmu] nos Dicionários da Porto Editora).

Tenho de vos confessar que, apesar de ter recorrido a outras ferramentas de consulta tais como 'wordreference' ou 'forvo', infelizmente não pude tirar uma conclusão definitiva. Se fosse este o caso duma possível variação fonética no português europeu, em que medida é aceitável na norma-padrão?

Muito obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

Nos dois primeiros casos em questão – mexo e fecho –, há de facto a tendência para o abaixamento de /e/, que se torna [ɐ] ou até se ditonga como [ɐj]. No entanto, há muitos falantes que mantêm [e] em mexo e pronunciam [e] em fecho, quando é nome, e [ɛ], quando é fecho, forma do verbo fechar.

Há, portanto, grande oscilação na prática, muito embora, do ponto de vista normativo, se favoreçam as pronúncias [e] e [ɛ].

Quanto a mesmo e desço, a situação é diferente porque /e/ é sempre [e] (pelo menos, na perspetiva dos usos da capital, Lisboa). Não sabemos de explicação clara para que assim seja, mas é importante assinalar que desde é [deʒdɨ] e desço é também pronunciado [deʃsu], ou seja, sem ditongação de /e/, apesar de /s/ travar sílaba (coda) e ser produzido como uma pré-palatal – sonora [ʒ] ou surda [ʃ].

Pergunta:

[A minha dúvida] diz respeito às realizações do ditongo [ɛj] como em anéis.

Segundo um manual de recente publicação (Manual de Fonética e Fonologia da Língua Portuguesa de Fails e Clegg publicado em 2021), na supracitada sequência também pode ocorrer a abertura da vogal, resultando em [ɐˈnɐjʃ].

Esta afirmação não se confirma em nenhuma fonte representável sobre a fonética ou fonologia do português de publicação recente que pude consultar [...].

Não tendo encontrado evidências contundentes a este respeito, pergunto-vos, mais uma vez, se a realização de éis como [ɐjʃ] pode ser considerada normativa no português europeu.

Obrigado.

Resposta:

Atualmente, os ditongos finais [ɐj] e [ɛj] tendem a neutralizar o seu contraste em [ɐj], pelo menos, nas variedades do litoral centro-sul de Portugal. Por outras palavras, o plural anéis pode soar "anéis", com "é" aberto, ou "anâis", com ditongo "âi".

Esta oscilação tem registo recente na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 3292).

Sobre [ɛj] > [ɐj], não encontramos doutrina normativa nem antiga nem recente que a censure. As duas pronúncias estão, portanto, corretas.

Pergunta:

Em Figueira de Castelo Rodrigo existe uma serra denominada Serra da Marofa.

O nome suscitou um certo prurido ao pároco local em meados do século passado, motivo pelo qual, de forma autónoma e sem que para tal ocorresse algum referendo, transitou de "Morofa" para "Marofa". Qual a designação correta e já agora a sua origem toponímica. Consta que deriva do árabe "Maroufah" "aquele que segue", fazendo alusão a um ponto de referência geográfico identificável no horizonte. Obrigada!

Resposta:

Pouco há a acrescentar ao que refere o consulente. O topónimo parece árabe por causa do elemento inicial ma – cf. Mafra –, mas de momento não se pode aqui confirmar tal origem, que é a que se encontra no artigo que na Wikipédia se dedica ao nome desta serra (orónimo).

Há, no entanto, um aspeto surpreendente: o de não haver registo do orónimo, seja "Morofa", seja "Marofa", antes do século XIX, nas fontes a que aqui foi possível ter acesso.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o feminino de frei/freire (monge). Será freira (sóror)? E nesse caso freira será também a forma feminina de padre?

Obrigado.

Resposta:

A forma frei usa-se geralmente como título e tratamento: «Frei Lucas de Santa Catarina».

O vocábulo freire é sinónimo de frade, mas este é mais usado que aquele. De qualquer modo, ambas as palavras ocorrem como apelativos, referencialmente, sem funcionarem como títulos: «O Algarve foi conquistado pelos frades/freires da Ordem de Santiago.»

Quando se trata de uma freira, o título e tratamento é irmã, soror ou sóror (plural é sempre sorores): «Bom dia, Irmã Lúcia», «Nunca li as cartas de Soror/Sóror Mariana Alcoforado».

Nem freira, nem soror (ou sóror) são os nomes femininos homólogos de padre, porque este último termo se aplica a um indivíduo que tem geralmente a seu cargo a vida religiosa de uma comunidade muitas vezes não clerical (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Existem, é certo, os termos madre e madre superiora/madre abadessa, mas estes referem-se a cargos desempenhados por mulheres que lideram comunidades de religiosas, ou seja, de freiras (ibidem).

Pergunta:

Estou a fazer uma pesquisa sobre o meu apelido materno Charneco e vejo que em Portugal, para além de ser um apelido, também é usado como alcunha. Gostaria de saber a etimologia ou origem desta palavra.

Muito obrigado

Resposta:

Charneco é apelido português, muitas vezes com origem no uso como alcunha.

É um derivado ou uma conversão do nome comum charneca, que em português significa «terreno pouco fértil onde cresce vegetação rasteira, de tipo arbustivo». É vocábulo que, na toponímia, ocorre sobretudo a sul do rio Mondego e da Serra da Estrela, o que não quer dizer que tenha origem árabe.

É possível que charneco seja uma maneira de dizer que alguém é oriundo de uma aldeia ou vila chamada Charneca. Contudo, pode haver outras razões, o que significa que quem tem o apelido Charneco pode dever essa forma de apelido a razões que variam de família para família.

A etimologia mais remota de charneco é a de charneca, palavra que parece ter-se desenvolvido no sul de Portugal e na Estremadura espanhola, provavelmente no período moçárabe, isto é, entre falantes de latim que viviam nos territórios controlados pelo poder árabo-muçulmano1. Charneca talvez tenha que ver com um termo de origem ibérica ou basca, de acordo com a proposta dos fiólogos espanhóis Coromines e Pascual2: «podria suponerse que del ibero-vasco sarna, *txarna, ‘arena’, viniera un adjetivo charneca, y que de ahí saliera el sustantivo portugués (< terra charneca) y castellano (< planta charneca)». Esclareça-se que se aceita que o espanhol charneca, sinónimo de "lentisco", encontre origem no português, língua onde a forma charneca se atesta desde finais do século XII.

 

1 Ver charneca em Joan Coromines e José Antonio Pascual, Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico (ve...