Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a respeito da etimologia exata da vila lusitana Fão, no município de Esposende.

Pelo que venho pesquisando, sua origem está no termo latino fanum, isto é, fano, pequeno templo ou altar. Tal etimologia configura-se como verídica? Seria Fão a forma herdada (atestada somente como nome de lugar) do termo, e fano a emprestada do latim?

Em inglês parece haver um caso similar com o antigo termo anglo-saxão hearg de mesmo valor semântico, ainda que mais relacionado ao velho credo pagão. Em inglês moderno virou somente o topônimo Harrow, encontrado em Inglaterra, ou seja não mais existindo como um mero substantivo para altar.

Resposta:

Não há ainda uma etimologia exata do topónimo em questão.

A hipótese que ainda hoje se aceita é a de Leite de Vasconcelos1, que é a referida na questão: Fão virá do latim fanum, i, que significava «templo» e, mais tarde,«templo pagão» (por oposição a templum, que podia associar-se ao cristianismo). Esta etimologia ganha alguma força quando se considera a toponímia da Galiza e das Astúrias, regiões onde se atestam topónimos como Fan (paróquia de Orro, concelho de Culleredo, na província galega da Corunha) e Fano (na região asturiana de Gijón). Se no caso galego não dispomos de informação que confirme a relação com o latim fanum, a verdade é que ao topónimo asturiano se atribui origem no referido vocábulo latino2.

Há, no entanto, quem sugira3 que Fão não vem do latim fanum, mas, sim, de fanha ou fanga (este homónimo do arabismo fanga, «medida de capacidade, mercado»)4, formas que não conseguimos aqui identificar em dicionários de regionalismos. No entanto, o facto de na toponímia de outras regiões do noroeste da península permanecerem topónimos relacionáveis com fanum leva a crer que Fão é com boa probabilidade o seu cognato português.

Sobre a forma fano, que significa «pequeno templo antigo» e é adaptação direta do latim fanum, por via erudita, que se atesta desde o século XVII5, será forma divergente de Fão, se este topónimo for realmente o resultado por via popular do referido vocábulo latino.

 

1 Cf. José Leite de Vasconcelos, "Ensaios de onomatologia portuguesa",

<i>Pisteiro</i>, <i>pistoleiro</i> e <i>cinotécnico</i>
Um equívoco e alguma terminologia

Um equívoco próximo do que ocorre entre palavras parónimas dá azo a um breve comentário a duas expressões usadas nas intervenções policiais: «cão pisteiro» e «binómio cinotécnico». Um apontamento do consultor Carlos Rocha.

Pergunta:

Como se pronuncia obreia (a massa da hóstia) em Portugal e no Brasil?

Procurei em vários dicionários, mas nenhum trazia se era como "obréia" ou "obrêia".

Resposta:

Em Portugal, a sequência final -eia tem sempre e fechado ou, como é mais natural na pronúncia padrão lusitana, um "â" fechado, fazendo com que palavras assim terminadas soem com "-âia": assembleia – [assemblâia]; obreia – [obrâia] (cf. Infopédia).

No Brasil, os registos dicionarísticos anteriores à aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, não exibem acento agudo sobre o e de obreia, ao contrário de assembleia que se escreveia assembléia, de modo a indicar um e aberto. Infere-se, portanto, que a pronúncia recomendada é com e fechado: obreia – [obrêia].

Pergunta:

O termo pilrito designa várias espécies de aves aquáticas da família dos escolopacídeos. Contudo, na bibliografia ornitológica mais antiga (anterior a 1960) aparece invariavelmente a grafia pirlito. Fica a sensação de que em determinada altura o termo original pirlito foi corrompido e deu lugar a pilrito.

Poderá ter-se dado o caso de ter sido uma corruptela acidental que acabou por se tornar a norma?

Gostaria de obter o vosso parecer acerca desta situação.

Obrigado.

Resposta:

É uma palavra curiosa, porque o ornitónimo parece ter origem num fitónimo, ou seja, no nome do fruto – pilrito – de uma planta -- pilriteiro (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e Dicionário Aberto1). No entanto, não parece haver fontes que confirmem esta relação.

Quanto a pilrito, pelo menos, no caso do fitónimo, supõe este uma forma mais antiga, pirlito, por ação de uma troca de segmentos fonéticos (metátese).

A forma original teria sido, portanto, deturpada, fixando-se a nova forma no uso. Sobre a etimologia de pilrito/pirlito não há informação precisa, mas contam-se duas propostas:

– é um empréstimo do castelhano pirlitero, derivado de pirla («pequeno pião, pitorra, piorra»), de origem onomatopaica (talvez alusivo ao ruído que produz ao girar) – cf. Dicionário Houaiss;

– em oposição ou complemento da explicação acima, pode supor-se ainda que o português e talvez o castelhano vêm «do latim pirŭla, diminutivo de pirum ‘pera’ + sufixo -ito» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

 

1 É uma versão em linha do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo.

Pergunta:

«Não sabia o que lhes esperava» ou «Não sabia o que as esperava»?

«Não lhes mordia» ou «não as mordia»?

A minha dúvida prende-se, não só mas também, com o facto de me parecer que no primeiro caso deve ser «as esperava» e no segundo «lhes mordia», sem no entanto saber o motivo pelo qual não deve ser idêntico em ambos os casos? Ou deve mesmo ser idêntico?

Obrigado.

Resposta:

No primeiro caso, a forma correta é de facto com «as»:

(1) «Não sabia o que as esperava.»

O verbo esperar pode ser empregado de acordo com o seguinte esquema: «esperar alguém» («esperá-lo/la»)

Quanto a morder, é verbo que pode usar-se com um esquema muito semelhante: «morder alguém» («mordê-lo/la»). Note-se, porém, que morder também admite o seguinte esquema: «morder alguma coisa a alguém» ou «morder em alguma coisa a alguém». Neste caso, é possível -lhe: «o cão mordeu-lhe a perna» ou «o cão mordeu-lhe na perna».