Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a origem da expressão «ser de trás da orelha» (ou «da ponta da orelha») que em linguagem popular significa «ser excelente». Exemplo: «Este vinho é de trás da orelha.»

Resposta:

Nas fontes de que dispomos, não achamos informação que explique cabalmente a origem da expressão em apreço. No entanto, algumas obras acolhem esta e outra expressões que, no seu conjunto, parecem definir algumas pistas para a compreensão da sua génese.

Assim, no Dicionário Prático de Locuções e Expressões Correntes (Papiro Editores, 2007, pág. 412), de Emanuel de Moura Correia e Persília de Melim Teixeira, regista-se «de trás da orelha», com o significado de «muito bom, magnífico», e outras expressões sinónimas que também incluem a palavra orelha: «da ponta da orelha – coisa que agrada, que é boa, bonita ou gostosa»; «do brinco da orelha – ótimo».

É de realçar que todas estas expressões são ainda sinónimas de uma outra que os Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1990), de António Nogueira Santos, registam: «Ser daqui (popular): ser excelente (acompanhando-se a expressão do gesto de puxar a ponta da orelha com dois dedos).»

Arrisco-me a sugerir que «por trás da orelha» se relacione também com este gesto, talvez na perspetiva da posição do polegar (ou outro dedo) que se coloque atrás da ponta da orelha para a apertar de encontro ao dedo que estiver à frente. Mas também não excluímos que a expressão tenha sido motivada por outras expressões que envolvem a parte de trás da orelha – «fazer o ninho atrás da orelha», «estar com a pulga atrás da orelha», que, no entanto, subentendem uma perspetiva negativa, e não positiva.

Pergunta:

Li no jornal Público a seguinte frase:

«Nas últimas duas semanas, 32 palestinianos e sete israelitas morreram na mais recente onda de violência em Jerusalém e na Cisjordânia – a mais grave dos últimos anos e que muitos consideram ser o início de uma terceira intifada (revolta), depois das iniciadas em 1987 e em 2000.»

A minha dúvida é a seguinte: é aceitável coordenar uma oração relativa com outra estrutura que não uma oração relativa? Ou seja, para escrever «e que» não temos de ter antes um que? Creio que a frase deveria ser como a apresento de seguida, mas queria ter a certeza:

«Nas últimas duas semanas, 32 palestinianos e sete israelitas morreram na mais recente onda de violência em Jerusalém e na Cisjordânia – que é a mais grave dos últimos anos e que muitos consideram ser o início de uma terceira intifada (revolta), depois das iniciadas em 1987 e em 2000.»

Muito obrigado.

Resposta:

Gramaticalmente, ambas as frases estão corretas. A segunda pode ser mais explícita do ponto de vista sintático, mas a primeira aproveita a possibilidade de coordenar grupos sintáticos com a mesma função sintática – no caso, «a mais grave dos últimos anos» (que, afinal, é uma construção elíptica, porque omite certos elementos de uma oração que se subentendem: «a que é mais grave») e «que muitos consideram ser o início de uma terceira intifada (revolta)» são expressões de natureza adjetival, com a função de modificador apositivo.

É de assinalar que, na coordenação de grupos sintáticos, não é obrigatório que estes tenham o mesmo tipo de estrutura. Isto diz a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 1768)[1]:

«As estruturas de coordenação mais típicas envolvem a coordenação de palavras ou de constituintes da mesma classe [...].

Nestes casos, existe paralelismo estrutural[2] entre os constituintes coordenados. O paralelismo estrutural, ainda que muito frequente, não é, contudo, um requisito absoluto das estruturas coordenadas. Assim, a coordenação de constituintes de classes sintagmáticas distintas é possível, como se ilustra em (21):

(21) a. Um molho [SA muito picante] e [SP com uma cor escura] acompanhava a carne.

       b. [SAdv Aqui] e [SP no rio Guadiana] apareceram cianobactérias que causaram a morte de muitos peixes.

       c. [SAdv Hoje] ou [Or sempre que precisares de algum livro], deves ir à biblioteca.

    ...

Pergunta:

Gostaria de saber se podemos dizer «ele fez-se amigo de mim», ou se devemos dizer apenas «ele fez-se meu amigo». Se não for possível, gostaria de saber a razão, sobretudo porque creio ser possível dizer «ele fez-se amigo dele/ele fez-se amigo de João», assim como «ele fez-se seu amigo», etc.

Obrigado e continuação do bom trabalho.

Resposta:

O uso de dele(s) e dela(s) em lugar do possessivo seu é muito diferente da possibilidade ou impossibilidade de ocorrência de «de mim». No primeiro caso, o uso é gramatical e justifica-se pela sua funcionalidade, permitindo que a referência à posse na 3.ª pessoa não seja confundida com a da 2.ª pessoa correspondente à forma de tratamento de menor ou nula intimidade como são você e «o(s) senhor(es)»/a(s) senhora(s)» («o seu amigo», «a sua amiga»).

No caso de «de mim», não se consagra na norma-padrão a correspondência de usos pronominais com preposições como possessivos da 1.ª pessoa e 2.ª pessoa. Por outras palavras, pode dizer-se «(o) meu amigo» e «(um) amigo meu», mas não se deve dizer «o amigo de mim», nem «um amigo de mim», e o mesmo se diga em relação a «de ti», «de nós» ou «de vós», cuja ocorrência será sempre incorreta em lugar de teu, nosso ou vosso. Note-se, porém, que, coloquialmente, no Brasil, é possível ocorrerem formas como «o amigo de vocês». Este uso deteta-se eventualmente entre falantes do português europeu, mas não faz parte da norma-padrão.

Pergunta:

Pode-se dizer «ainda não lá fui» em vez de «ainda não fui lá»?

Resposta:

A colocação mais corrente do advérbio é depois do verbo – neste caso, ir: «Ainda não fui lá.» Contudo, por uma questão de realce, é também possível antepor não só ao verbo mas também ao advérbio de negação não: «Ainda lá não fui.»

Observe-se, contudo, que pôr entre o verbo e não leva a frase a ficar estranha, se não mesmo agramatical (= frase gramatical; */? = frase agramatical ou com fortes restrições de aceitabilidade):

1 – «Ainda lá não fui.»

2 – */? «Ainda não lá fui.»

Pelos exemplos, infere-se que o advérbio locativo tem de figurar entre os advérbios ainda e não (frase 1), sem grande possibilidade de aparecer entre não e o verbo (frase 2).

Repare-se que frases com estrutura semelhante serão válidas, se o verbo for modificado por ainda («ainda fui lá»/«ainda lá fui») ou por («já fui lá»/«já lá fui»). Mas, se na frase ocorrer apenas não, o advérbio só depois do verbo é colocável:

3 – «Não fui lá.»

4 – * «Não lá fui.»

Esta incompatibilidade de não e em sequência, como acontece nos exemplos 2 e 4, é objeto de análise m...

Pergunta:

Em português, temos a expressão «estar na berlinda» com sentido de «ser objeto de comentários, atenção ou curiosidade» ou «ver-se em evidência embaraçosa, por motivo não lisonjeiro», conforme Houaiss (2009). Mas não consigo explicar para meus alunos a origem da extensão de sentido metafórico dado a esta expressão. Vocês poderiam me ajudar?

Resposta:

Existem várias hipóteses sobre a origem da expressão em apreço, mas nenhuma se confirma ou sobressai como mais plausível. Das fontes disponíveis, duas registam a expressão, mas, sobre a sua origem, só em parte coincidem, como a seguir se mostra.

– Orlando Neves, no seu Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Editorial Notícias, 2000), considera que «estar na berlinda» tem que ver com o italiano «Essere alla berlina», «[...] expressão italiana com o mesmo sentido que a nossa: "estar em evidência, em foco", às vezes com conotação chocarreira ou ridícula». Este autor pergunta: «Donde provirá a frase? Dizem certos autores que se originou do nome dado a uma elegante carruagem (existem algumas no Museu dos Coches), em francês berline. Teria sido em Berlim que, pela primeira vez, se construiu uma carruagem desse tipo, ao que se crê para o eleitor de Brandeburgo, Frederico Guilherme. "Estar na berlinda" seria, assim, sinónimo de ostentação e riqueza, donde a expressão passada a linguagem popular. Mas bem mais curiosa, contraditória e adequada ao significado primitivo (depois atenuado) me parece ser outra versão. Segundo José Pedro Machado, berlinda é a palavra proveniente do italiano berlina, cujo equivalente português é o termo picota. Ora, a picota era um poste de madeira, erguido em praça pública, em cuja extremidade superior se expunham as cabeças dos justiçados ou, quando guarnecido de argolas e correntes, nele se executavam penas de açoites, expondo os delinquentes ao escárnio público. Estar na picota (berlinda) era, de facto, estar bem em evidência.»

– Sérgio Luís de Carvalho, em Nas Bocas do Mundo (Lisboa, Planeta Manuscrito, 2010, p. 155), propõe outra hipótese, mas também expõe a de a expressão ter origem no nome de um veículo: «"Estar na berlinda" [...] como significando alguém que está a ser alvo de comentários alheios. Segundo parece, ist...