Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual das seguintes hipóteses se encontra correta? Porquê? O pronome reflexivo faz falta?

(a) Quero convidar a ti e à tua família para uma festa que estou a organizar.

(b) Quero convidar-te, a ti e à tua família, para uma festa que estou a organizar.

Muito obrigado!

Resposta:

Aconselho «quero convidar-te a ti e à tua família para uma festa que estou a organizar», mas, neste caso, considero que não se pode dizer que a omissão do pronome -te seja inaceitável. Explico porquê a seguir.

Para que «a ti» tenha a função de complemento direto, é geralmente necessário que seja antecedido do pronome átono correspondente – te: diz-se/escreve-se, portanto, «quero convidar-te a ti», dando-se à relação entre o pronome te e a expressão «a ti» uma função enfática (para se sublinhar que o interlocutor é a pessoa convidada, e não outra pessoa).

Atenção que, na frase, se emprega o pronome átono te, que, nesse contexto, não é reflexo, uma vez que não retoma o sujeito da frase («eu», subentendido). A frase em questão apresenta também um elemento coordenado, «e à tua família». Se não se associasse a «a ti» ou a outra expressão preposicional com pronome («a mim», «a si»), a expressão seria «a tua família», que não poderia ser antecedida do pronome átono correspondente (as expressões nominais não reforçam pronomes átonos): «quero convidar a tua família» (não é possível «quero convidá-la à tua família»).

Contudo, na frase em discussão, «a tua família» está coordenada a «a ti», e, de modo a garantir a congruência sintática entre os elementos coordenados, também a expressão nominal é precedida da preposição a, embora mantendo a função de complemento direto (sobre complementos diretos preposicionados, ler Louvai ao Senhor ou Louvai o Senhor).

Por outras palavras, o pronome átono te é reforçado ou enfatizado por «a ti», que, por último, é coordenado com «à tua família». Esta ...

Pergunta:

Qual a origem do verbo entanguir-se (entanguidos, por ex.)? É algum regionalismo (Algarve, por ex.)? É aceitável a variante "enteguir-se"?

Resposta:

Entanguido não é um regionalismo algarvio, mas, sim, um vocábulo do português popular. Assinale-se, porém, que, entre as fontes consultadas para elaboração desta resposta, as variantes enteguido (pronunciada "entèguido") e intenguido, por exemplo, figuram no Dicionário do Falar Algarvio (Faro, Algarve em Foco Editora, 1996), de Eduardo Brazão Gonçalves, com este significado: «Tolhido de frio. De: entaguecer = encolher-se com frio».

Ambas as formas, entenguido e integuido, ocorrem noutras regiões do país (cf. Tesouro do Léxico Patrimonial Galego e Português). Por exemplo, os dicionários gerais consultados (Dicionário Houaiss, dicionário da Porto Editora e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) registam entanguir e entanguecer como variantes do mesmo verbo ou como sinónimos que, segundo o Dicionário Houaiss, significam «tornar(-se) hirto de frio; enregelar(-se)».

De acordo ainda com esta última fonte, os referidos verbos terão origem em tango, homónimo de tango (dança), mas que será um regionalismo de Portugal com o significado de «galho», «pau». Observe-se, porém, que os dicionários da Porto Editora e da Priberam – elaborados e mantidos em Portugal – não acolhem tango em tal aceção, embora con...

Pergunta:

Referindo o ato de retirar o tubo endotraqueal de um paciente, qual é a grafia certa: estubar, ou extubar?

Resposta:

Deve escrever-se extubar.

O verbo extubar é registado pela edição de 2009 do Dicionário Houaiss como termo usado no domínio da medicina, com o significado de «remover tubo ou sonda de» (exemplo da mesma fonte: «extubar um paciente»).

Pergunta:

Vários dicionários portugueses apresentam a palavra treinamento sem qualquer restrição regional ou nacional. Porém, a verdade é que a sua sonoridade, segundo algumas opiniões, pode remeter para a variante brasileira da nossa língua. Qual é a vossa opinião sobre a palavra treinamento?

Resposta:

Treinamento é palavra que se usa sobretudo no Brasil, muito embora deste país também venham exemplos de treino.

Uma consulta do Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, revela que apenas nos textos brasileiros ocorre a palavra treinamento; contudo, nos mesmos textos, a forma treino, empregada como substantivo, também não está ausente. Uma consulta da Folha de São Paulo evidencia o uso quer de treino quer de treinamento. Além disso, os dicionários brasileiros incluem treinamento como palavra sinónima ou variante de treino1.

Ainda assim, não é possível afirmar que treinamento seja um uso exclusivamente brasileiro. É certo que, consultando o referido Corpus do Português, se verifica que, em textos portugueses, não ocorre treinamento; apesar disso, esta forma consta dos dicionários elaborados em Portugal2.

Quanto à possibilidade de, no português do Brasil, se usarem mais palavras sufixadas por -mento do que em Portugal, não é possível fazer aqui tal generalização. Há casos que podem dar essa impressão – por exemplo, mais uma vez no Corpus do Português, verifica-se que recebimento, surgimento e gerenciamento e são mais frequentes em textos brasileiros do que em textos portugueses (gerenciamento chega a não aparecer em nenhum texto de Portugal). Trata-se, portanto, de um tema merecedor de atenção, mas que terá de ser feito em nova resposta ou num artigo mais extenso3.

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Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem se a palavra liberdade tem algum sufixo.

Grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Na forma liberdade pode reconhecer-se uma variante do sufixo -idade, embora o referido substantivo não seja um caso típico das palavras assim sufixadas.

Com efeito, no vocábulo, o segmento -dade é identificável com o sufixo -idade, à semelhança do que acontece, por exemplo, com a sufixação de beldade. No entanto, é controverso classificar o morfema liber- como base da derivação de liberdade, ainda que ele se associe ao adjetivo livre. Contudo, sabendo que os nomes sufixados com -idade se associam aos radicais dos adjetivos (p. ex., digno – dign- + idade → dignidade), pode sugerir-se que se trata de uma palavra complexa não derivada, tal como acontece por exemplo com palavras como conceber (cf. M.ª Graça Rio-Torto e outros, Gramática Derivacional do Português, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pág. 90). Convém ainda assinalar que há descrições que tomam liberdade não como palavra formada em português, mas, sim, adaptação do latim libertate. Em suma, pode aceitar-se que -dade é sufixo, mas revela-se difícil incluir liberdade entre os derivados sufixais formados em português.