Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 26, p. 477, col. 1, l. 25, observa-se, na entrada sabedoria, uma referência ao romance de cavalaria Crónica do Imperador Clarimundo (João de Barros, Coimbra, 1522): «… e pois isto que disse mais foi espiorado de sua graça que de minha sabedoria…» (capítulo 28.º).

Tendo efetuado alguma pesquisa, não encontrei o termo "espiorado" em nenhum lugar, devendo confessar que foi breve e superficial a pesquisa efetuada.

A minha questão é, pois: o termo "espiorado" foi palavra portuguesa – hoje um arcaísmo –, ou trata-se de uma gralha na referida enciclopédia? Se é arcaísmo, isto é, se realmente existiu, qual o significado que hoje se pode atribuir?

Antecipadamente grato, pela V.ª dedicação.

Resposta:

Trata-se de uma gralha, porque a grafia original é espirado:

«... pois isto que disse mais foi espirado de sua graça que de minha sabedoria...» (João de Barros, Chronica de Emperador Clarimundo, donde os Reys de Portugal descendem, tirada de lingua ungara em a nossa Portuguesa, Lisboa: Officina de Francisco da Sylva, Livreiro da Academia Real, e do Senado; e impressa à sua custa, 1742, cap. XXVIII, p. 298 – disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Espirado é o mesmo que inspirado, tendo em conta o Diccionario da Antiga Linguágem Portugueza, de H. Brunswick (Lisboa, Empresa Lusitana Editora, 1910).

Pergunta:

Um dos critérios para se distinguir o complemento de nome é ser selecionado por um nome deverbal. Neste caso, se o verbo de onde deriva o nome for intransitivo, continua-se a considerar que exige um complemento? Por exemplo: «a construção da ponte» (verbo transitivo direto = «construir algo»); «a viagem marítima» (viajar é intransitivo, se bem que reconheço que pode também ser transitivo indireto...).; «o sorriso da Maria é lindo».

Ainda... na frase: «o livro que me deste é muito interessante», a oração relativa tem função sintática de complemento do nome, ou modificador restritivo? Consideram que «livro» exige complemento?

Grata.

Resposta:

O complemento de um nome (no caso, sorriso) pode também relacionar-se com a transposição do sujeito do verbo transitivo correspondente (sorrir). É, portanto, adequado dizer que «da Maria» é complemento do nome na expressão «o sorriso da Maria»: «A Maria sorri» → «o sorriso da Maria».

Em relação a «viagem marítima», o adjetivo marítima tem a função de complemento do nome, porque pressupõe o uso transitivo indireto de viajar: «viajar por mar» [«por mar» = complemento oblíquo] → «viagem marítima».

Finalmente, a oração subordinada adjetiva relativa restritiva «que me deste» é um modificador restritivo. Não se trata de um complemento do nome, porque, se assim fosse, deveria remeter para as características semânticas de livro, as quais pressupõem uma atividade e o seu resultado (o próprio livro); nessa atividade contam-se: a) um autor; b) o tema, o tópico ou o assunto que organizam o texto do livro. Como a oração «que me deste» não se enquadra nem em a) nem em b), depreende-se que não pode ser senão um modificador restritivo.

Pergunta:

Por que motivo não se escreve "fémea"? Sendo esta uma pronúncia bastante comum em Portugal (basta fazer uma pesquisa para encontrar até títulos de notícias de alguns jornais com esta grafia), não se deveria aplicar a regra de usar o acento agudo só com função de marcar a sílaba tónica nesta situação (tal como acontece em quilómetro, termómetro, barómetro, manómetro, cronómetro, etc, em que há variação de pronúncia)?

Resposta:

Não se escreve fémea, por uma razão que foi dada há mais de 70 anos, nas Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945:

«As vogais tónicas a, e e o de vocábulos proparoxítonos levam acento circunflexo, quando são seguidas de sílaba iniciada por consoante nasal e soam invariavelmente fechadas nas pronúncias normais de Portugal e do Brasil: câmara, pânico, pirâmide; fêmea, sêmea, sêmola; cômoro. [...]»

Nessa época, considerou-se, portanto, que a pronúncia normativa da palavra era com e tónico fechado, mesmo em Portugal; e hoje é assim.

Contudo, pelo menos, em Portugal, a experiência mostra-nos que a forma "fémea" está bastante espalhada. Este vocábulo aproxima-se, assim, com casos como os de gémea e Eufémia, que têm acento agudo apenas com a finalidade de marcar a tonicidade, porque a vogal pode vacilar entre os timbres aberto e fechado (cf. gémeo e Eufémia no Vocabulário da Língua Portuguesa, que Rebelo Gonçalves publicou em 1966).

Pergunta:

Pergunto qual é a ortografia mais correta do instrumento musical: "djambé", ou "djembê"?

Grato, desde já, pela atenção.

Resposta:

A palavra parece ainda não ter forma estável em português1, e registam-se, portanto, variantes – djambé, djembé, djembê –, sem que nenhuma seja considerada o padrão. No entanto, se for verdadeira a origem atribuída ao termo – do malinqué2 jembe, em transcrição fonética [dʲẽbe], segundo artigo da Wikipédia em inglês –, djembê pode ser uma forma adequada, muito embora se encontrem reservas ao uso da sequência dj, o que permite defender a forma jembê, mais de acordo com a fonia e grafia características do português.

1 Agradecemos à professora Clara Saraiva (investigadora do Instituto de Investigação Científica Tropical e docente do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) a informação transmitida, segundo a qual qualquer destas três variantes tem uso corrente conforme os países e as regiões onde se toca este instrumento musical.

2 O malinqué é uma «língua nigero-congolesa falada pelos malinqués» (Dicionário Houaiss), os quais constituem um «povo do Mali e da Guiné, que vive da agricultura (arroz, sorgo), segundo uma organização fortemente hierárquica e um sistema de clãs, em aldeias fortificadas» (idem, ibidem).

Pergunta:

Do ponto de vista da correção lexicográfica e da prosódia, devemos empregar perméase, ou permease? Ou o uso é indistinto? Ou permease seria corruptela da forma acentuada, ou, talvez, idiossincrasia de biólogos?

Agradeço, desde já, a gentileza.

Resposta:

A forma mais correta é perméase, mas o uso mais difundido, mesmo entre especialistas, é o da forma permease.

Perméase/permease é um termo da bioquímica e aplica-se a «cada uma de um grupo de enzimas que participa do processo de transporte ativo de substâncias através da membrana celular» (Dicionário Houaiss). As duas formas – perméase e permease – estão dicionarizadas (cf. dicionário da Porto Editora), além de registadas nos vocabulários ortográficos recentes (ver Vocabulário Ortográfico do Português e vocabulário ortográfico da Porto Editora). É de notar, porém, que o vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras acolhe apenas a forma perméase; mesmo assim, o Dicionário Houaiss, que remete permease para perméase, assinala que a grafia sem acento gráfico, embora não preferencial, é mais u...