Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Morfologicamente, trio é um substantivo coletivo? Ou um numeral coletivo?

Resposta:

Pode considerar-se – e muitas gramáticas assim o fazem – que trio é um numeral coletivo.

Dicionário Terminológico não inclui os numerais coletivos entre os quantificadores numerais. Há gramáticas que não chegam a classificar palavras como trio ou dezena como coletivos; mas, por exemplo, no caso da Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 2003, pág. 204), de Evanildo Bechara, é dito que se trata de numerais que têm analogia com os coletivos, com a diferença de definirem a quantidade.

No entanto, há várias gramáticas que incluem par e dezena numa série que forma a classe dos numerais coletivos (ver P. Teyssier, Manual de Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 1989, pág. 185). Mais recentemente, a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 926/927) apresenta par, trio, quadra, quinteto, dezena, etc. como uma série que constitui os numerais coletivos.

Em suma, trio é geralmente tratado como coletivo e afigura-se legítimo classificá-lo entre os numerais coletivos, o que não impede que outras gramáticas lhe atribuam outra classificação.

Pergunta:

Estou com dúvidas na construção desta frase: «O inacreditável esplendor e beleza daquela vista deixavam-nos de coração cheio.»

Atendendo à concordância em número, não sei se deveria escrever: «Os inacreditáveis esplendor e beleza daquela vista deixavam-nos de coração cheio.» Julgo que não, mas a questão é que o adjectivo «acreditável» refere-se tanto a «esplendor» como a «beleza». Por outro lado, creio ter ouvido um linguista explicar há tempos que, quando o objecto não é quantificável (quando não tem limites concretos), está correcto manter tanto o adjectivo como o verbo no singular, ainda que a frase refira mais do que um desses objectos. Qual a resposta correcta? E qual a explicação?

Muito obrigado.

Resposta:

A sequência «o inacreditável esplendor e beleza» está correta.

Para esta resposta, não foi possível identificar o preceito que o consulente atribui a certo linguista, mas, tendo em conta Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Editora Lucerna, 2003, pág. 545/546), é possível dizer/escrever «o inacreditável esplendor e beleza daquela vista...», tal como se diz «toda a sua luta e sacrifícios» ou «com boa coragem e zelo. É de realçar que neste últimos exemplos se coordenam substantivos de géneros diferentes, ao primeiro dos quais se associam determinantes e adjetivos que abrangem semanticamente o segundo termo coordenado. Note-se, contudo, que Bechara aceita também casos semelhantes a «os inacreditáveis esplendor e beleza daquela vista...», porque regista sem comentar desfavoravelmente a seguinte sequência: «bons coragem e zelo».

Pergunta:

Qual é a forma correcta?

«Não era o que ela conjecturava, a ideia que fazia das suas quedas, dos seus vícios, da sua vida que o irritava, mas a permissividade que se autorizava de o querer admoestar.»

ou

«Não era o que ela conjecturava, a ideia que fazia das suas quedas, dos seus vícios, da sua vida que o irritava, mas a permissividade que se autorizava em o querer admoestar.»

Com os meus agradecimentos.

Resposta:

Revela-se estranha a ocorrência do substantivo permissividade com uma oração completiva introduzida por preposição, porque esta palavra, ao contrário de permissão, não tem correspondência direta com o verbo permitir:

1 – Saiu do quartel, com permissão de/para voltar depois da meia-noite.

2 – Saiu do quartel, com permissividade de/para [?] voltar depois da meia-noite.

Comparando 1 com 2, verifica-se que só 1 está em estreita correspondência com permitir: «Saiu do quartel, tendo-lhe sido permitido voltar depois da meia-noite.» Em 2, aparece permissividade, palavra derivada de permissivo, adjetivo que, embora evidencie óbvia afinidade morfológica e semântica com permitir e permissão, se aproxima também do significado e da sintaxe do adjetivo tolerante, mas juntando a este uma apreciação negativa (cf. uma das aceções de permissivo no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: «que admite facilmente, que tolera certos comportamentos, certas práticas que outros reprovariam ou não permitiriam»). Neste contexto, convém assinalar que, ocorrendo permissivo com complementos, são geralmente a preposição com ou a sequência de preposições para com que os introduzem («permissivo com/para com os abusadores») e serão estas também as palavras a que se associará permissividade se houver que usar preposições («permissividade com/para com os abusadores»).

Tendo, porta...

Pergunta:

Antes de mais,agradeço o contributo que têm dado, ao longo de vários anos, para melhor se compreender, falar e escrever a língua portuguesa.

Na análise da frase, abaixo transcrita, surgiram-me algumas dúvidas.

«A era do petróleo criou prosperidade a uma escala que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.»

A oração iniciada por que será subordinada adjetiva relativa restritiva, ou subordinada adverbial consecutiva (dado que estará implícito, na subordinante, que «criou prosperidade a uma escala [tal] que...»)?

Agradeço a paciência e disponibilidade!

Resposta:

Pode considerar-se que a oração é ambígua, porque interpretável como relativa ou como consecutiva (como bem observa o consulente).

A leitura consecutiva decorre de aceitar-se que está subentendida uma expressão de intensidade – por exemplo, o determinante tal, que marca intensidade:

1 – «A era do petróleo criou prosperidade a uma escala que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.» = «A era do petróleo criou prosperidade a uma escala [tal,] que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.»

Esta ambiguidade é comentada pela Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 758/759), de Maria Helena Mira Mateus e outras autoras, ao realçar a afinidade entre orações consecutivas e orações relativas:

«A existência de frases ambíguas [...] entre a natureza relativa e a de consecutiva aproxima de novo os dois tipos de construção:

[...] Tenho uma casa que abriga muita gente.

[...] Tenho uma casa tal que abriga muita gente. [...]»

É de assinalar, porém, que a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 2169) classifica como orações consecutivas aquelas que, introduzidas por que, ocorrem numa frase exclamativa:

«O operador consecutivo pode não ser expresso, em frases exclamativas como as seguintes:

[...] Estava um frio que não se podia sair de casa! [...]

Ele trabalha que se mata! [...]»

Voltando à frase em questão, embora esta não seja exclamativa, a intensificação associada a «uma escala» permite enquadrar a oração «que as g...

Pergunta:

Há anos venho ouvindo um certo "jargão" utilizado para referir-se a diferenças de saldos, conforme abaixo:

«Olá, você poderia me explicar porque essa fatura de 100 está com saldo de 110 antes do ajuste?

Analista responde:

Ô, sim, me desculpe, é que eu errei e fiz um lançamento A MAIOR do valor original de 100.»

«Olá, você poderia me explicar porque essa fatura de 100 está com saldo de 90 antes do ajuste?

Analista responde:

Ô, sim, me desculpe, é que eu errei e fiz um lançamento A MENOR do valor original de 100.»

Gostaria de saber se essa expressão utilizada de «a maior» e «a menor» está correta, porque sempre dói em meus ouvidos quando ouço as pessoas falando isso. No entanto, ouço dos mais altos cargos, como diretores, gerentes e controllers, que utilizam sem nenhuma censura tal expressão.

Agradeço a atenção e fico no aguardo para um possível esclarecimento.

Resposta:

Não há consenso quanto à aceitabilidade das locuções «a maior» e «a menor», que são locuções atestadas apenas no português do Brasil. O Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001) regista-as como subentradas, respetivamente, de "maior" e "menor", com os seguintes significados: «a maior»: «[o] mesmo que "a mais"»; «a menor»: «em quantidade, qualidade ou teor inferior (ao esperado); a menos, de menos. Ex.: trouxe três artigos a menor do que lhe fora encomendado.»

Refira-se que o dicionário em apreço consigna tais expressões sem lhes juntar comentários, do que se depreende que as considera corretas.

No entanto, Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português – Confrontando regras e usos (São Paulo, Editora UNESP, 2002), considera que não se justifica o emprego das duas expressões em lugar de «a mais» e «a menos», mas não adianta explicações.

Tudo isto sugere que, para os mais zelosos da tradição linguística, é melhor evitar as expressões em causa. Mesmo assim, não se poderá dizer que «a maior» e «a menor» sejam usos incorretos, visto a sua dicionarização mostrar que se tornaram hoje aceitáveis. Observe-se, por último, que estas expressões são desconhecidas em Portugal, onde se usa comummente «a mais» e «a menos». Mantém-se, portanto, atual uma resposta de José Neves Henriques (1916-2008), que ilustrou bem esse facto em 2000.

Cf.: «