Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Domino a origem e significado da palavra eito. Gostaria que me explicassem a origem (história) da expressão idiomática «a eito», cujo significado também domino.

Resposta:

A palavra eito vem do «lat[im] ictus, us 'golpe, choque; compasso marcado; raio (do Sol); pulsação'» (Dicionário Houaiss, s.v. eito). O seu uso na locução «a eito» (= «ininterruptamente») tem o mesmo modelo que outras expressões que definem modos de fazer: «a esmo» («ao acaso»), «a tempo» («dentro do prazo»), «a nado», «a pé», etc. A expressão é bastante antiga, visto estar atestada em textos do período galego-português, designadamente nas Cantigas de Santa Maria, do rei Afonso X de Leão e Castela (1221-1284), avô de D. Dinis (1261-1325). Exemplo:

1. «A sa moller a Reynna, que jazia eno leito cabo del, e este sonno lle contava tod' a eito. (= À sua mulher, a Rainha, que estava deitada no leito junto dele, e este sonho lhe contava todo a eito)

No galego atual, também se regista a locução a eito, com um significado muito semelhante à expressão homónima portuguesa, conforme atesta o dicionário da Real Academia Galega.

Pergunta:

Qual dos trechos seguintes está correto?

«De que aquela porcaria de rocim não era Málek-Adel, de que entre ele e Málek-Adel não existia a menor semelhança, de que qualquer pessoa minimamente sensata devia ter reparado nisso à primeira vista... disso tudo já não restava a menor dúvida!»

«"Que aquela porcaria de rocim não era Málek-Adel, que entre ele e Málek-Adel não existia a menor semelhança, que qualquer pessoa minimamente sensata devia ter reparado nisso à primeira vista... disso tudo já não restava a menor dúvida!«

Obrigado.

Resposta:

Na perspetiva gramatical, pode dizer-se que ambas as frases estão corretas. Contudo, do ponto de vista estilístico, a segunda ressalta como mais adequada, porque evita a repetição da preposição de, a qual pode omitir-se (o mesmo já não pode dizer da conjunção que).

A preposição é possível gramaticalmente antes de cada uma das três orações subordinadas completivas* (ou, usando um termo mais tradicional, orações subordinadas integrantes) que constituem a enumeração em causa:

1. «De que aquela porcaria de rocim não era Málek-Adel,/ de que entre ele e Málek-Adel não existia a menor semelhança,/ de que qualquer pessoa minimamente sensata devia ter reparado nisso à primeira vista... [disso tudo já não restava a menor dúvida!]».

Em 1, sucedem-se três orações coordenadas, todas elas dependentes da locução «não restar dúvida de..», que inclui a preposição de, o que se observa melhor, se pusermos tais orações na ordem direta, isto é, a seguir ao verbo que as seleciona:

2. «já não restava dúvida de que aquela porcaria de rocim..., de que entre ele e Málek-Adel..., de que qualquer pessoa...»).

Contudo, como na frase apresentada pelo consulente está destacada (deslocada ou topicalizada para o começo da frase, antes do verbo) toda esta enumeração oracional, fica favorecida, do ponto de vista estilístico, a omissão da preposição, que é, de resto possível, antes da conjunção integ...

Pergunta:

A propósito da forma "mancheia", citada há dias num programa de televisão, e tendo os interlocutores feito referência ao Ciberdúvidas, a verdade é que não encontro aqui esse esclarecimento. Pergunto pois: "Mancheia" é o mesmo que "mão-cheia" ? ou é antes uma corruptela da forma original (e recomendada)?

Resposta:

Mão-cheia e mancheia são formas corretas e têm o mesmo significado: «quantidade que se pode conter na mão, de uma só vez» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

Numa obra que ainda hoje é uma referência para a norma-padrão quanto à fixação de palavras, o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, regista-se mão-cheia e mancheia, sem juntar apreciações negativas sobre o uso de uma ou outra forma. Assinale-se todavia que Rebelo Gonçalves acolhe como variante de mão-cheia a forma mancheia, à qual, por sua vez, corresponde a variante macheia. Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958) também aceita como corretas as formas mancheia e mão-cheia, mas observando que «a primeira [é] mais popular».

É, pois, legítimo concluir que mão-cheia é, em Portugal, forma mais neutra, adequada a todos os registos, enquanto mancheia, que é forma correta, tem conotação mais popular.

Mais discutível é achar que mancheia é corruptela de mão-cheia1. Perante casos como o de não, que passa a ou na nos falares meridionais portugueses, dir-se-ia que a sequência man- de mancheia ilustra o mesmo fenómeno fonético; e, supondo o ditongo nasal anterior à sua redução a uma vogal ou mais fiel à história da palavra (na Idade Média, escreve-se mão, mas como dissílabo – "mã-o" – e ainda não com ditongo nasal), talvez se possa aceitar mancheia

Pergunta:

«No Porto Alto» ou «em Porto Alto»?

Como acham que é certo: no Porto Alto ou em Porto Alto?

Na lógica de outros topónimos cujos nomes correspondem a substantivos comuns (casos do Porto, do Porto Santo, da Figueira da Foz, da Cuba, etc.), seria «o Porto Alto».

Acontece que, por exemplo, os CTT usam no código postal desta localidade o nome em género neutro: «em Porto Alto».

Resposta:

O topónimo em questão ocorre tradicionalmente com artigo definido – «o Porto Alto» –, atendendo a que se fala nas «festas do Porto Alto em honra de Nossa Senhora de Guadalupe».

Considera-se que os topónimos que têm origem em nomes comuns concretos são usados com artigo definido: «a Figueira da Foz» (cf. figueira); «o Funchal» (cf. funchal, de funcho). No entanto, este critério nem sempre se verifica: por um lado, há topónimos do tipo apontado que ocorrem sem artigo definido («vivo em Figueira de Castelo Rodrigo»); por outro, nomes concretos que designem espaços edificados ou unidades de povoamento como castelo, castro, ponte, vila, fixaram-se muitas vezes como topónimos sem artigo definido: «vivo em Castelo de Paiva/ Castro Laboreiro/Ponte de Lima/Vila Nova de Gaia». O caso da cidade do Porto confirma o critério geralmente aplicado: «o Porto». Mas encontram-se topónimos como Porto de Mós que o contrariam: «vivo em Porto de Mós».

A respeito da associação do artigo definido aos topónimos derivados de nomes comuns concretos, portanto, é preciso estar sempre atento ao uso local, sem descurar a denominação oficial. Diz-se «o Porto Alto», com artigo definido, não propriamente porque o núcleo do topónimo é realizado por uma palavra com origem no nome comum porto, mas muito mais porque os usos local e administrativo integram o artigo definido.

Pergunta:

O Ciberdúvidas disponibiliza diversos artigos sobre a regência do verbo chamar. Porém, não sinto que se tenha abordado suficientemente a questão que se prende com a forma passiva do verbo. Em português europeu, qual seria a construção mais natural:

(a) «O João é chamado Camões Júnior porque escreve belos poemas»;

(b) «O João é chamado de Camões Júnior porque escreve belos poemas»;

ou

(c) outra?

Resposta:

Ambas as construções estão corretas.

A opção (a) relaciona-se com o uso de chamar como verbo transitivo-predicativo que seleciona um predicativo do complemento direto sem preposição: «chamam-no Camões Júnior» [se o complemento direto for realizado por um grupo nominal, há preferência pela construção de complemento indireto e predicativo: «chamam Camões Júnior ao João»] → «ele é chamado Camões Júnior».

O uso da preposição de com o predicativo de chamar («chamar alguém de...») costuma ser apresentado como típico do Brasil1, mas, em Portugal e noutros países de língua portuguesa, não é desconhecido, podendo até dizer-se que se expande. Tal construção ocorre tanto na frase ativa, como na frase passiva: «chamam-no de Camões Júnior» → «ele é chamado de Camões Júnior».

1 Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 519, nota 16) dizem que a construção com de é «[...] desusada em Portugal e condenada pelos puristas», mas «é a predominante na linguagem coloquial brasileira e tende a sê-lo também na expressão literária modernista». Hoje é difícil ser tão assertivo, porque «chamar alguém de...» é construção que pode ocorrer entre falantes do português de Portugal. Leia-se a resposta "A regência de chamar", de Regina Rocha, bem como os restantes Textos Relacionados que aqui se indicam.