Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Podemos considerar a palavra filósofo um composto morfológico?

Obrigada.

Resposta:

Trata-se efetivamente de um composto morfológico, porque é uma palavra resultante do encontro de dois radicais:  filo + '-sof(o) (este último elemento tem associado um acento tónico que recua até à penúltima sílaba do composto).

Note-se que esta análise é válida no contexto do português atual. Contudo, é preciso também lembrar a história da palavra, a qual está atestada em português, pelo menos, desde o século XIV, muito provavelmente transmitida ao português pelo latim, que, por sua vez, a tinha tomado do grego antigo.* A possibilidade de analisar uma palavra no contexto atual da língua a que pertence é muitas vezes independente da verdadeira história da palavra. 

* O Dicionário Houaiss observa em nota etimológica a filósofo: «[do] latim philosōphus, i 'filósofo, o que cultiva, professa a filosofia', do grego philósophos, on 'amigo do conhecimento', do grego phílos, ē, on 'amigo' e do grego sophós, ḗ, ón 'sábio, instruído' [...].»

Pergunta:

«Este livro não tem gravuras.»

Neste contexto, a utilização de gravuras em português europeu faz sentido?

Resposta:

A expressão pode fazer sentido, porque a palavra gravura, que tem vários significados (é polissémica), é também usada como o mesmo que «estampa», «figura» e «imagem» (cf. Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão, Dicionário do Livro, Livraria Almedina, 2008). No entanto, atualmente é corrente o emprego de ilustração e «livro ilustrado», expressões que não pressupõem forçosamente o conceito estrito de gravura («imagem obtida por processo de gravação»).

Pergunta:

Micro-ondas faz parte da família de palavras de onda?

Obrigada.

Resposta:

Sendo onda uma palavra polissémica (tem vários significados), tanto se aplica às vagas do mar como a qualquer movimento sinuoso, incluindo uma «perturbação periódica que se propaga num meio material ou no espaço» (Dicionário Houaiss).

Se uma família de palavras é o «conjunto das palavras formadas por derivação ou composição a partir de um radical comum» (Dicionário Terminológico; exemplos da mesma fonte: mar, maré, marítimo, marinheiro, marina), então é legítimo considerar a pertença de micro-ondas à família de palavras de onda, a qual inclui, por exemplo, quebra-ondas, ondulatório, ondulado, ondear, ondejante, etc. Trata-se de vocábulos que se relacionam todos não com uma única aceção de onda, mas com as várias que constituem o seu campo semântico.

Pergunta:

Sei que há uma publicação sobre este tema no vosso site, pelo que escusam de me reencaminhar para lá. O problema de se verem muitos erros escritos é que, com o tempo, começamos a duvidar. Agora com este frequente: «o quão». Sempre escrevi [...] quão sem artigo definido antecedente. Mas tenho visto, inclusive em professores de Português, a expressão «o quão»! Sempre aprendi que quão substituía «o quanto» no sentido de perguntar ou afirmar «como», «de que modo», «a que ponto».

Quão errado estou!?

Obrigado pela ajuda.

Resposta:

O uso de «o quão» está correto.

A palavra quão é um advérbio1 que substitui quanto antes de um adjetivo ou de um advérbio em frases exclamativas e declarativas (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – ACL):

1. «Quanto muda a sociedade!»

2. «Quão diferente é a sociedade de hoje!»

3. «Quão longe estou da felicidade!»

Nas frases exclamativas, parece restringir-se o uso do artigo definido (o ? indica que as frases são de aceitabilidade duvidosa):

1'. ?«O quanto muda a sociedade!»

2'. ?«O quão diferente é a sociedade de hoje!»

3'. ?«O quão longe estou da felicidade!»

Nas frases declarativas, não se notam restrições: quanto é usado com artigo definido – segundo o dicionário da ACL, trata-se de uma locução adverbial – com função intensificadora, como se fosse uma expressão nominal («o quanto»)*:

4. «Todos reconhecem o quanto ele é esforçado» [exemplo do dicionário da ACL].

5. «Todos reconhecem o quão esforçado ele é.»

Sendo assim, não existe razão para rejeitar o uso de «o quão», que ocorrerá em condições próximas das de 4, com a condição de ficar associado a adjetivos e advérbios como em 2 e 3.

Refira-se, por último, que «o quão» já ocorre na língua há séculos:

6. «Mas tanto que se passa este acidente,/ e vejo o quão distante de vós mouro,/ temo quanto imagino por agouro,/ porque ...

Pergunta:

«Pode conhecer-se muitos lugares», ou «pode-se conhecer muitos lugares»?

Resposta:

Na construção formada por um auxiliar (ir, poder) e um verbo no infinitivo (conhecer), o pronome pessoal átono pode associar-se quer ao auxiliar quer ao infinitivo:

1. Vai/Pode conhecer-se muitos lugares.

2. Vai-se/Pode-se conhecer muitos lugares.

Na corrente normativista prevalece, porém, a doutrina de que é mais consistente do ponto de vista lógico associar o pronome pessoal átono ao verbo principal – ou seja, à forma de infinitivo (porque se considera que o verbo principal marca a ideia principal da expressão verbal), tal como se apresenta em 1 («pode conhecer-se»). Mas não se pense que a junção do pronome ao auxiliar é erro; não é, e tem grande tradição na língua (ler Textos Relacionados).

É ainda de notar que o pronome pessoal átono que ocorre nestes exemplos marca um sujeito indeterminado, equivalente a alguém, o que explica que o verbo auxiliar se encontre no singular («pode conhecer-se»/«pode-se conhecer»). No entanto, com verbos transitivos, isto é, verbos que se usam com complemento direto («conheço muitos lugares»), mesmo associados a auxiliares, há autores que consideram a construção mais correta é a que faz concordar o verbo com a expressão nominal a que se refere, porque se considera que a frase corresponde a uma construção passiva (diz-se que o se é uma partícula ou pronome apassivante). Sendo assim, com verbos transitivos também se diz e escreve (e a norma mais conservadora até recomenda):

3. Vão/Podem conhecer-se muitos lugares.

4. Vão-se/Podem-se conhecer muitos lugares.