Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ouvi recentemente e pela primeira vez a palavra "matrafia", numa reportagem televisiva e procurei-a nos parcos dicionários de que disponho, sem a encontrar. Curiosamente, se se "googlar", aparece, ainda que raramente, em alguns blogues e comentários. Dado que foi utilizada por uma idosa que tinha sido vítima de burla (foi o caso em que venderam purificadores de água após suposta demonstração da má qualidade da mesma...), tratar-se-à de um regionalismo (ocorreu em Alpiarça)? A expressão terá sido aproximadamente: «... fizeram primeiro muitas matrafias...» Penso que possa significar algo semelhante a maroscas, matreirices, aldrabices (?), mas talvez para quem usa tenha um significado mais próprio. Não deve ser fácil dicionarizar palavras, e imagino que andem por aí muitas outras ignoradas ou em vias de extinção, quais espécies de plantas por identificar...

Resposta:

É uma palavra que tem uso, como o consulente atesta, mas que não está registada nas fontes a que temos acesso. No entanto, pela sua configuração e sentido, parece variante de matrifício, que José Pedro Machado (Grande Dicionário da Língua Portuguesa) regista como regionalismo alentejano que significa «malefício, bruxaria, bruxedo, maldade» e que tem variantes – matrafice é a que acolhe este dicionarista, mas há mais: matrifícia (Alto Alentejo; cf. Dicionário de Expressões Populares, de Guilherme Augusto Simões. No Algarve, há notícia do emprego de matrafisga (cf. Eduardo Brazão Gonçalves, Dicionário do Falar Algarvio, Algarve em Foco, 1996).

Pergunta:

Pretendo saber se me podem esclarecer uma dúvida que tenho em relação a uma palavra usada em confeção. O termo "colarete" (debrum) Qual o termo mais correto? "Colarete"; "colorete"; "clorete"; ou "debrum". Todos são sinónimos e referem-se ao mesmo? Encontro várias referências em artigos escritos sobre estes termos, mas desconheço qual é o mais correto.

Obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

As palavras registadas por dicionários e vocabulários ortográficos são colarete e debrum. As formas "colorete" e "clorete" são alterações fonéticas (as chamadas deturpações) de colarete. Quanto a debrum, os dicionários indicam que denota um efeito na confeção de uma peça de roupa parecido mas não igual ao colarete.

Convém, portanto, comparar as duas de colarete e debrum:

1. [o] colarete

«co·la·re·te |ê| (colar + -ete) substantivo masculino 1. [Arquitetura] Moldura, composta de um astrágalo e filete. 2. [Regionalismo] Punho de camisa. 3. [Vestuário] Tira sobre a qual se aperta o colarinho. 4. [Vestuário] Gola de vestido. 5. [Vestuário] Cós da saia, das calças» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, consultado em 8/11/2016).

2. [o] debrum

de·brum |úm| (origem duvidosa, talvez alteração de dobrum, de dobrar + -um) substantivo masculino 1. Fita, galão, cairel ou outro ornamento com que se guarnece ou segura a borda de um tecido, oleado, etc. = DEBRUADO 2. Adorno numa margem ou extremidade (ex.: moldura com debrum dourado). = ORLA 3. [Heráldica] Qualquer esmalte que rodeia uma peça separando-a do campo (cotica, filete, vergueta, etc.) (idem, consultado em 08-11-2016).

Observa-se, porém, que, na publicidade a máquinas de costura que se encontra disponível na Internet, debrum aparece como sinónimo de colarete

Pergunta:

Podemos considerar a palavra filósofo um composto morfológico?

Obrigada.

Resposta:

Trata-se efetivamente de um composto morfológico, porque é uma palavra resultante do encontro de dois radicais:  filo + '-sof(o) (este último elemento tem associado um acento tónico que recua até à penúltima sílaba do composto).

Note-se que esta análise é válida no contexto do português atual. Contudo, é preciso também lembrar a história da palavra, a qual está atestada em português, pelo menos, desde o século XIV, muito provavelmente transmitida ao português pelo latim, que, por sua vez, a tinha tomado do grego antigo.* A possibilidade de analisar uma palavra no contexto atual da língua a que pertence é muitas vezes independente da verdadeira história da palavra. 

* O Dicionário Houaiss observa em nota etimológica a filósofo: «[do] latim philosōphus, i 'filósofo, o que cultiva, professa a filosofia', do grego philósophos, on 'amigo do conhecimento', do grego phílos, ē, on 'amigo' e do grego sophós, ḗ, ón 'sábio, instruído' [...].»

Pergunta:

«Este livro não tem gravuras.»

Neste contexto, a utilização de gravuras em português europeu faz sentido?

Resposta:

A expressão pode fazer sentido, porque a palavra gravura, que tem vários significados (é polissémica), é também usada como o mesmo que «estampa», «figura» e «imagem» (cf. Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão, Dicionário do Livro, Livraria Almedina, 2008). No entanto, atualmente é corrente o emprego de ilustração e «livro ilustrado», expressões que não pressupõem forçosamente o conceito estrito de gravura («imagem obtida por processo de gravação»).

Pergunta:

Micro-ondas faz parte da família de palavras de onda?

Obrigada.

Resposta:

Sendo onda uma palavra polissémica (tem vários significados), tanto se aplica às vagas do mar como a qualquer movimento sinuoso, incluindo uma «perturbação periódica que se propaga num meio material ou no espaço» (Dicionário Houaiss).

Se uma família de palavras é o «conjunto das palavras formadas por derivação ou composição a partir de um radical comum» (Dicionário Terminológico; exemplos da mesma fonte: mar, maré, marítimo, marinheiro, marina), então é legítimo considerar a pertença de micro-ondas à família de palavras de onda, a qual inclui, por exemplo, quebra-ondas, ondulatório, ondulado, ondear, ondejante, etc. Trata-se de vocábulos que se relacionam todos não com uma única aceção de onda, mas com as várias que constituem o seu campo semântico.