Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Será aceitável dizer «eu sei o que é um coma»? O artigo faz sentido, na frase? Ou devemos sempre dizer «Eu sei o que é estar num estado de coma»?

Resposta:

Tem sentido usar o artigo indefinido com coma, e não se pode dizer que seja incorreto. No entanto, certas propriedades semânticas da palavra e o facto de o seu uso se sujeitar a combinatórias vocabulares fixas determinam que a interpretação de «um coma» não seja exatamente a do seu significado mais genérico.

Assim, em português, diz-se «o coma» ou «o/um estado de coma», ou, ainda, com adjetivação, «um coma profundo», mas parece menos habitual dizer-se que alguém está «num coma», só com artigo indefinido; o que vai ao encontro do juízo hesitante sobre a aceitabilidade de «eu sei o que é um coma». Neste último caso, a formulação mais corrente será «eu sei o que é o coma» ou «eu sei o que é o estado de coma», ou, ainda, «eu sei o que é um estado de coma», sobretudo se com estas frases o enunciador pretender declarar que tem a capacidade de definir ou descrever o estado de coma. Observe-se igualmente que «estar em/de coma», «entrar em coma» ou «continuar/permanecer em coma», sem artigo definido nem artigo indefinido, são expressões consagradas que parecem funcionar globalmente como unidades lexicais em que os verbos atuam como suportes do substantivo coma, evidenciado que a palavra resiste a uma determinação e até à pluralização. Com efeito, nota-se que coma associado a quantificadores numerais se interpreta como «caso de coma», como se verifica no seguinte exemplo:

1. «Nos quatro dias, foram atendidos no local 626 homens e 274 mulheres. Dois comas alcoólicos, reacções alérgicas ao bicho dos pinheiros, queimaduras solares e provocadas pelos tubos de escape, alguns traumatismos e gastroenterites foram as principais maleitas registadas naquela unidade» (Correio da Manhã...

Pergunta:

A frase «O Secretariado faz constar, pelo presente aviso, de que pretende contratar três funcionários» está correta?

Resposta:

A frase correta não tem a preposição de: «O Secretariado faz constar, pelo presente aviso, que pretende contratar três funcionários.»

O verbo constar pode ter associada a preposição de, mas esta ocorre apenas antes de uma expressão nominal: «A abertura do concurso constava do aviso» (= «A abertura do aviso estava incluída no aviso»).

No entanto, quando constar ocorre na 3.ª pessoa do singular, intransitivamente, com o significado de «é dito», «diz-se», «corre (como notícia)», com uma oração completiva («consta que o Secretariado pretende três funcionários»), não se pode usar a dita preposição, porque tal oração não é complemento do verbo, mas, sim, seu sujeito. Um constituinte frásico que seja sujeito não é preposicionado: «... consta que o Secretariado pretende contratar três funcionários»* = «consta isso» = «isso consta».

* Adaptou-se frase, excluindo o verbo fazer, que marca uma construção causativa, que também mereceria a sua própria análise. Contudo, é possível limitar o comentário à relação da oração completiva com o verbo constar.

 

Pergunta:

Como classificamos a palavra vivenda quanto à sua formação? É derivada por sufixação, ou formada por derivação não afixal?

Resposta:

O exemplo que nos apresenta não tem uma análise que se inscreva entre os casos tradicionais de derivação. Embora não seja uma palavra simples – é uma palavra complexa, porque, ao observá-la, distinguimos claramente a raiz viv- do verbo viver e outro elemento que parecerá um sufixo –, acontece que a terminação -enda não é um sufixo do português, mas, sim, do latim: «[vivenda] substantivação do latim vivenda, particípio futuro passivo de vivere, 'viver' [...]" (Dicionário Houaiss).

Por outras palavras, vivenda enquadra-se num tipo de palavras complexas que não é abordado no ensino não universitário e que se podem denominar como «palavras complexas não derivadas» (cf. Graça Rio-Torto e outros autores, Gramática Derivacional do Português, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 75), ou seja, trata-se de palavras que têm constituintes (por exemplo, o elemento -ceber de conceber ou receber) que não estão disponíveis para formar novas palavras em português (não se formam "desceber", nem "transceber"; ver a referida gramática).

Pergunta:

Qual o feminino de «notário público»? Pode-se dizer «notária pública», ou será mais correto dizer «notário pública», ou mesmo manter-se a forma masculina?

Os meus agradecimentos.

Resposta:

A palavra notário permite a formação do feminino notária, tal como advogado, a de advogada, ou bombeiro, a de bombeira. Além disso, devem seguir-se as regras da concordância: se se diz «notário público», com o adjetivo público a concordar com notário, então, diga-se «notária pública» – e não «"notário" pública», que é incoerente –, sem qualquer problema. Observe-se, aliás, que o feminino notária é a forma usada para referir uma mulher que exerça tal atividade, como se pode confirmar em documentos disponíveis nas páginas eletrónicas da Ordem dos Notários de Portugal.

Pergunta:

Ouvi recentemente e pela primeira vez a palavra "matrafia", numa reportagem televisiva e procurei-a nos parcos dicionários de que disponho, sem a encontrar. Curiosamente, se se "googlar", aparece, ainda que raramente, em alguns blogues e comentários. Dado que foi utilizada por uma idosa que tinha sido vítima de burla (foi o caso em que venderam purificadores de água após suposta demonstração da má qualidade da mesma...), tratar-se-à de um regionalismo (ocorreu em Alpiarça)? A expressão terá sido aproximadamente: «... fizeram primeiro muitas matrafias...» Penso que possa significar algo semelhante a maroscas, matreirices, aldrabices (?), mas talvez para quem usa tenha um significado mais próprio. Não deve ser fácil dicionarizar palavras, e imagino que andem por aí muitas outras ignoradas ou em vias de extinção, quais espécies de plantas por identificar...

Resposta:

É uma palavra que tem uso, como o consulente atesta, mas que não está registada nas fontes a que temos acesso. No entanto, pela sua configuração e sentido, parece variante de matrifício, que José Pedro Machado (Grande Dicionário da Língua Portuguesa) regista como regionalismo alentejano que significa «malefício, bruxaria, bruxedo, maldade» e que tem variantes – matrafice é a que acolhe este dicionarista, mas há mais: matrifícia (Alto Alentejo; cf. Dicionário de Expressões Populares, de Guilherme Augusto Simões. No Algarve, há notícia do emprego de matrafisga (cf. Eduardo Brazão Gonçalves, Dicionário do Falar Algarvio, Algarve em Foco, 1996).