Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o significado da expressão «ser um rabo de porco»?

Veja-se esta frase:

«Você é um rabo de porco, mesmo!?»

Resposta:

Na maior parte das fontes consultadas para a elaboração desta resposta, não foi possível encontrar esclarecimentos sobre a expressão em apreço. No entanto, ela parece ser interpretável como «andar atrapalhado» ou «comportar-se de forma atrapalhada»», conforme se pode inferir destas ocorrências da associação do particípio passado (enrolado) verbo enrolar, que, no registo informal, pode significar «atrapalhar(-se)» (cf. Dicionário Houaiss), à expressão «rabo de porco», como metáfora de qualquer situação complicada ou intrincada:

1. «Mais enrolado que rabo de porco, Renato de Castro (PMDB) propõe o que deixou de fazer como deputado estadual» (título de notícia no blogue brasileiro GSIA 24 horas)

2. «A verdade é que o peemedebista, até dia desses petista, está mais perdido que agulha no palheiro e mais enrolado que rabo de porco.» (idem, ibidem)

 

N. E. (20/4/2017) – Do consultor Gonçalo Neves, recebemos a seguinte achega, que muito agradecemos:

«Em relação [a esta resposta], creio poder dar um pequeno aditamento. Existe o adágio "de rabo de porco nunca bom virote", que se acha, por exemplo, neste interessante rifoneiro, dedicado ao porco. O adágio é antigo, pois figura numa redondilha de Camões (<...

Pergunta:

Em documentos relacionados com ecologia fluvial é frequente encontrar-se alternância entre o termo ripário e ripícola para referir organismos que se encontram associados à zona adjacente a linhas de água. Por exemplo: «galeria ripária» e «galeria ripícola». Algum dos termos está errado, ou é menos correto neste contexto?

Resposta:

Os adjetivos ripário e ripícola estão corretos e são sinónimos quer na linguagem corrente quer no discurso especializado.

Do ponto de vista estritamente linguístico, os dois termos são legítimos, ambos significando «que vive às margens de rios ou em outros corpos de  água (diz-se de ser vivo)», pelo que se pode ler nos respetivos verbetes do Dicionário Houaiss (esta fonte diz ser ripário um brasileirismo), que também lhes atribui as seguintes etimologias:

ripário: «lat. riparius, a, um 'que frequenta os bancos de um rio', de ripa, ae 'margem, ribanceira', por via erudita»;

ripícola: «ad. do latim ripa, ae 'margem de rio' + -i- + -cola»

Em relação a dicionários publicados em Portugal – o Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (Priberam) e o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (GDLP) de José Pedro Machado –, não mostram estes haver sinonímia entre os dois adjetivos, mas, ao definirem ripário como «marginal» (o Priberam e o GDPL dão o vocábulo como característico do português do Brasil), presume-se que possa ser empregado para referir o que se encontra nas margens de alguma coisa, ou seja, com a mesma denotação que ripícola.

No discurso especializado, mesmo em textos de Portugal, figuram os dois adjetivos junto dos mesmos substantivos – «zona ripícola/ripária» –, sem que se note diferenç...

Pergunta:

«– Mui distintos cavalheiros, tenho eu já escutado a interessante conversação que tendes entabulado. Forçoso é, no entanto, que agora vos interrompa para oferecer-vos algo que seria de bom alvedrio examinardes.»

Na frase acima, está correto o infinitivo flexionado examinardes?

Obrigado.

Resposta:

A forma verbal em questão está correta no contexto apresentado.

Trata-se do núcleo de uma oração de infinitivo – «(vós) examinardes» –, que desempenha a função de sujeito na oração relativa «que seria de bom alvedrio examinardes», cujo antecedente é algo. Esta análise torna-se mais clara se pusermos a referida oração de infinitivo na ordem direta (sujeito – verbo + complementos), conforme patenteia a equivalência no seguinte exemplo:

1. «que seria de bom alvedrio examinardes» = «que [examinardes]suj seria de bom alvedrio»

A possibilidade de substituir «examinardes» por isso também prova que essa forma verbal pode exercer a função de sujeito:

2. «que [examinardes]suj seria de bom alvedrio» = «que [isso]suj seria de bom alvedrio»

Na oração em causa, tal como se apresenta em 1, justifica-se o infinitivo pessoal (ou flexionado) examinardes, porque se pretende indicar que o exame a fazer cabe aos destinatários do enunciado («mui distintos cavalheiros»), interpelados pela forma de tratamento vós, que está subentendida.

A opção pelo infinitivo impessoal (ou não flexionado ) – «que seria de bom alvedrio examinar» – teria outra intenção; seria uma maneira de assinalar que o exame poderia ser feito por qualquer pessoa, tanto os destinatários do enunciado como o sujeito do mesmo: «... que seria de bom alvedrio examinar».

Recorde-se que o infinitivo pessoal resulta da associação ao infinitivo impessoal (examinar) dos sufixos de pessoa e número da flexão verbal: examin...

Pergunta:

Desde criança que ouvi uma expressão relativa ao enchimento em demasia ou no limite de uma colher, por exemplo – juntar uma «colher de cagulo». "Googlando" o termo "cagulo" obtêm-se alguns resultados que referem a existência desta terminologia. Contudo, no dicionário online da Porto Editora – Infopédia –, só existe o termo cogulo com o significado que acima refiro. A utilização do termo "cagulo" é ou não correcta?

Obrigado.

Resposta:

A expressão que os dicionários gerais e os vocabulários ortográficos registam é cogulo, que é a forma correta, no contexto da norma-padrão. Contudo, em estudos sobre os dialetos portugueses, também se regista a variante cagulo, própria da linguagem popular e eventualmente aproveitável no discurso literário de cariz regionalista.

O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa consigna cogulo com três significados, associando-lhe ainda uma locução adverbial:

«1. Porção de cereais, legumes secos ou outros géneros que excede as bordas de uma medida. 2. Antiga medida quadrada, correspondente a um alqueire cheio acima dos bordos ou acogulado. 3. O que está em demasia ≃ EXCESSO. de cogulo, loc. adv. , em demasia, em excesso; acima da medida. Encheu a medida de cogulo

No artigo respeitante a cogulo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (disponível na Infopédia) inclui a locução «com cogulo», que tem o mesmo significado que «de cogulo» e parece ser desta variante.

Já a forma cagulo é uma variante popular que conhece registo dicionarístico menos frequente – por exemplo, na 10.ª edição do Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, atribuído a António Morais da Silva e na 2.ª edição (1913) do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo (que diz ter recolhido na Guarda e ser sinónimo ...

Pergunta:

A propósito do lançamento do último disco do grupo musical Ala dos Namorados, intitulado Vintage, tanto os seus participantes, nas entrevistas que concederam, por exemplo à Antena 1, como a própria promoção do CD nesta emissora de rádio, dizem sempre a palavra em inglês: /vinteidje/. Independentemente de duvidar que essa seja mesmo a pronúncia inglesa*, parece-me que, sendo a palavra de facto um anglicismo, ela já entrou, e há muito, na língua portuguesa – e devidamente dicionarizada com o significado genérico de «boa colheita» –, pelo que deve ser pronunciada como tal. Ou seja, /vĩntɐdʒe/. Estou certo?

* Em inglês, não será, antes, com acentuação na primeira sílaba?

Resposta:

Na verdade, o anglicismo vintage1 pronuncia-se aproximadamente como "víntidje", ou seja, com acento tónico na sílaba inicial e com o sufixo -age a soar como "idje" (transcrição fonética [ˈvɪntɪdʒ]; ouvir também aqui e aqui).2

Trata-se de uma palavra inglesa de origem francesa, como muitas que entraram no inglês na sequência da conquista normanda, a partir de 1066. No Online Etymology Dictionary de Douglas Harper pode ler-se a seguinte informação etimológica (tradução livre3):

 «vintage nome começo do século XV, 'colheita das uvas, colheita de vinho de uma vinha', do anglo-francês vintage (meados do século XIV), do francês antigo vendage, vendenge 'vindima, colheita de uma vinha', do latim vindemia 'junção de uvas, colheita de uvas', de uma combinação de vinum 'vinho' + radical de demere 'tirar, separar' (de de- 'de, 'de junto de' + emere 'tomar. O sentido passou a 'idade ou ano de um vinho particular' (1746), depois a um sentido genérico adjetival de 'pertencente a um tempo antigo (1883). Usado com referênia a automóveis desde 1928.»

Em Portugal, o anglicismo vintage já era conhecido no contexto do vinho, em especial do vinho do Porto, entendendo-se que este é vintage, quando é de qualidade excecional e resulta de uma s...