Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra "garantístico/a" existe? Foi vista neste contexto:

«A inexistência de contrato de trabalho... não invalida que exista uma relação laboral... mas apenas que ela é mais precária e menos garantística para o trabalhador.»

Resposta:

Embora não se encontre em dicionários gerais, o adjetivo garantístico é usado na Filosofia e no Direito, aplicado genericamente a leis e decisões que dão garantias de proteção e defesa de direitos dos cidadãos.

Assinale-se que o Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa (1948) de Artur Bivar regista garantismo, «doutrina social e económica de [Charles] Fourier [1772-1837], a qual consiste num estado de garantia mútua, ou antes, uma espécie de economia dirigida», e garantista, «que se relaciona com, ou diz respeito ao garantismo». O adjetivo em questão é um derivado do radical de garantista.

Pergunta:

Há poucos dias procurei a origem da expressão «saber de cor»* e fiquei a saber que cor significa «coração» em latim. Como na expressão portuguesa a palavra é pronunciada de uma maneira diferente do normal ("cór" em vez de "côr"), pesquisei-a em dicionários online e descobri que em português antigo, a palavra cor ("cór") é um substantivo masculino para coração... mas não consegui encontrar as fontes/referências dessa definição. Gostaria de vos perguntar se conhecem algum dicionário em formato físico ou digital em que conste o mesmo, ou qualquer outra fonte de informação que apoie/comprove a informação que encontrei. Os dicionários modernos em que procurei só têm o significado actual, provavelmente porque não incluem arcaísmos de todo, e no Vocabulário Portuguez e Latino digital que consultei através do site da Biblioteca Nacional Portuguesa, só consta a definição actual de cor ("côr").

Desde já com os melhores agradecimentos.

Resposta:

O substantivo cor – com ó aberto – é efetivamente um sinónimo de coração, com a particularidade de apenas ocorrer na locução «de cor», que significa «saber de memória». Este uso limitado de cor tem uma razão histórica que não parece completamente esclarecida.

A pergunta no fundo é a seguinte: porque se diz hoje coração, para denotar e referir o «órgão muscular oco, na cavidade torácica, que recebe o sangue das veias e o impulsiona para dentro das artérias», e só se usa cor em «de cor», como em «saber de cor» e «falar de cor»? No Ciberdúvidas, há várias respostas (ver Textos Relacionados) a respeito da locução «de cor» ("cór") e até informação sobre a etimologia deste homógrafo de cor ("côr"). Contudo, importa apontar de modo breve algumas pistas para o melhor enquadramento histórico quer de cor quer da forma correspondente, coração, que é a palavra comummente empregada.

Assim, encontra informação muito sumária no dicionário da Porto Editora e no Priberam. O Dicionário Houaiss também indica que cor é arcaísmo, em lugar de coração, mas pouco mais adianta. A consulta do Vocabulário Portuguez e Latino (publicado em 1712), elaborado em época anterior ao aparecimento da lexicografia contemporânea e dos seus critérios científicos, indica que, nos começos do século XVIII, a situação era igual à de hoje: cor só figura na locução «de cor».

Nesta discussão, convém lembrar que, noutras línguas europeias, a ideia de «saber de memória» é ex...

Pergunta:

Pode substituir-se a frase «terminarei isto em seis dias» por «terminarei isto em dois tríduos», sem perda de sentido quanto ao tempo em que a tarefa será concluída ?

Resposta:

Emprega-se a palavra tríduo, no sentido de «sequência de três dias» e «festa que dura três» (cf. tríduo, Dicionário Houaiss).

É, portanto, possível dizer «dois tríduos» como sinónimo de «seis dias», muito embora não seja tríduo uma palavra corrente. Na verdade, trata-se de um vocábulo culto – vem diretamente do latim tridŭum, i, «intervalo de três dias» (idem, ibidem) –, mas de uso pouco frequente mesmo na comunicação mais formal ou na expressão literária (observe-se que não ocorre no Corpus do Português). Sendo assim, no discurso quotidiano, se já parece insólita uma frase como «termino isto dentro de um tríduo», mais inusitado será anunciar o remate de alguma coisa no prazo de «dois tríduos», quando simplesmente se declara a intenção de acabar uma tarefa em meia dúzia de dias.

Pergunta:

Deparei com uma frase onde se pode ser que «o Luís postou-se de frente ao Pedro». Pergunta: não deveria ser «em frente a» ou «defronte a»? A construção «de frente a» é admissível e, se sim, é admissível neste contexto?

Obrigado.

Resposta:

Não se recomenda o uso da sequência «de frente a» como locução prepositiva.

Como locuções prepositivas, os dicionários registam as sequências «em frente de», «em frente a» e «de frente de», mas não «de frente a» (cf. frente no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Pode, no entanto, ocorrer sozinha a expressão «de frente», como locução adverbial: «A luz batia-lhe na cara, iluminava-lhe de frente a expressão contraída e triste. » (Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953, in Corpus do Português).

Quanto a defronte, figura este advérbio nas locuções prepositivas «defronte de», muito frequente, e «defronte a», menos frequente, conforme se pode confirmar, por exemplo, numa consulta do Corpus do Português (idem).

Pergunta:

Na literatura, encontra-se muitas vezes a expressão «ao cair da noite» e nunca «ao cair a noite». Esta última não se usa por não ser correta? Ou ambas estão corretas e têm o mesmo significado, mas a primeira é mais adequada? Por exemplo:

«Ao cair da noite, o homem desapareceu.»

«Ao cair a noite, o homem desapareceu.»

Estarão ambas as frases corretas?

Muito obrigada!

Resposta:

Ambas as frases estão corretas, mas correspondem a estruturas sintáticas diferentes.

«Ao cair da noite» é a expressão que ocorre geralmente no discurso, com o significado de «no momento em se fazia noite» ou «ao anoitecer»:

1. «A filha de Maria Ema regressava da praia ao cair da noite, regressava com os livros às costas atados por uma correia.» (Lídia Jorge, O Vale da Paixão: Romance, 1998 in Corpus do Português)

Nesta expressão, cair é usado como um substantivo («o cair»), o que explica que seja depois modificado por uma expressão introduzida pela preposição de, como se fosse uma construção de posse: «o cair da noite» (cf. «o período da noite», «o frio da noite»). A presença da preposição a marca um valor temporal, tal sucede com «ao sinal de avanço» (= «no momento em que se faz o sinal de avanço»).

Quanto a «ao cair a noite», a estrutura é diferente, porque se trata de uma oração de infinitivo com sujeito explícito: «ao cair a noite» = «quando a noite cai/caiu/cair».