Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É acertado afirmar "sociedade egótica", ou "egótica" nem sequer existe? Será mais avisado "sociedade egoísta/egotista"?

Reiterados agradecimentos.

Resposta:

Se as formas adjetivais em questão são as que correspondem a egotismo, «tendência de uma pessoa para falar só de si, para se supervalorizar, se vangloriar», então, as formas corretas que estão geralmente dicionarizadas são egotista, que também pode ser usado como nome, e egotístico, que só ocorre como adjetivo1.

Note-se que egótico, não sendo forma incorreta, quase não encontra registo nos dicionários ou vocabulários ortográficos (cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras).

Se o pretendido é aludir a egoísmo, «amor excessivo a si próprio, subordinando os interesses alheios ao seu próprio interesse», o adjetivo a empregar é egoísta.

Recomenda-se, portanto, «sociedade egotista», «sociedades egotística» e, já com um significado diferente, «sociedade egoísta».

1 Foram consultados o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Sobre a etimologia de egotismo, registe-se a nota associada à sua entrada no Dicionário Houaiss: «[do] inglês egotism (1714) 'uso excessivo do pronome pessoal da primeira pessoa do singular; hábito de falar exageradamente de si; senso exagerado de importância dada a si próprio' + -tism (como em idiotism)».

Pergunta:

Tenho dúvidas no que concerne ao processo de formação de justapor. Podem esclarecer-me?

Agradecido

Resposta:

Sobre a análise e classificação morfológicas da palavra justapor, considera-se geralmente que este verbo  justapor palavra derivada por prefixação. Com efeito, o morfema justa- constitui um prefixo, embora muito pouco produtivo em português, limitando-se a alguns derivados:

«[justa-, prefixo]do advérbio preposicional latino juxta "logo depois, contíguo, junto, paralelo a" [...]; a cognação reduz-se a justaepifisário/justepifisário, justafluvial, justaglomerular, justaglomérulo, justalinear, justalinearidade, justamarinho, justamarítimo, justamédico, justampular, justapor, justaposição, justapositivo, justaposto, justar, justarticular, justaspinal, justatropical, justatubular, justavertebral (a mudança do -x- latino para -s- é devida ao caráter românico assumido pelo original adverbial e preposicional tornado prefixo)» (Dicionário Houaiss).

Observe-se, no entanto, que a classificação da forma justa- como prefixo não é consensual, pois há autores que a consideram um elemento de composição ou um radical (cf. Graça Rio-Torto et al., Gramática Derivacional do Português, Coimbra, 2016, pp. 411/412).

 

1 Sobre a dificuldade de estabelecer uma fronteira clara entre derivação prefixal e composição morfológica, ler "Prefixos e radicais".

Pergunta:

Sendo as palavras anulação e anulamento sinónimas, em que situações poderá ser preferível a utilização de uma ou da outra?

No contexto da matemática, a palavra anulamento está consagrada numa situação muito específica: a da «lei do anulamento do produto». Fora desse contexto, fico sempre indeciso...

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Ambas as palavras estão corretas. Na linguagem corrente, anulação parece a palavra mais acessível: «anulação do contrato/casamento/matrícula». No entanto, é também frequente trocar anulação por anulamento, sem que a substituição seja vista como incorreção. Pode até acontecer que os dois vocábulos ocorram no mesmo texto:

(1) «Em comunicado, as comissões de utentes adiantam que enviaram uma carta ao primeiro-ministro, António Costa, a perguntar que medidas vai o Governo tomar quanto ao transporte fluvial depois do anúncio pelo executivo, ao Jornal de Negócios, da anulação do concurso» ("Anulado concurso para novos barcos da Transtejo. Utentes exigem explicações", TSF, 18/12/2019).

(2) «A previsão foi confirmada à TSF pela empresa adiantando ainda que "das cinco candidaturas apresentadas, apenas uma" cumpria os requisitos técnicos, o que levou ao anulamento do concurso» (idem, ibidem).

Considerando que os dicionários remetem anulamento para anulação, pode considerar-se que esta última é a palavra de uso preferencial em registos não especializados. Já na linguagem técnica e científica, caberá a cada área fixar uma opção, como acontece com o caso referido pelo consulente: «lei do anulamento do produto»

Pergunta:

Qual o significado da palavra "siza". Eu a encontrei em um texto escrito na década de 1870, na seguinte frase: «...a meia siza foi recolhida...»

Resposta:

A forma siza será uma antiga variante ortográfica de sisa, que significa «imposto sobre transações de compra e venda ou dação em pagamento de troca de propriedade imobiliária; imposto de transmissão "inter" vivos» (Dicionário Houaiss).

Com efeito, o Thesouro da Lingua Portugueza, dicionário da autoria de Frei Domingos Vieira (1775-1855) e publicado em 1871, regista duas formas, sisa e siza. Mais tarde, a Reforma Ortográfica de 1911 atribuirá uma única grafia1, fixando a escrita do -s- medial, o qual, de acordo com um critério etimológico, reflete o -s- medial com que já se escrevia assise, termo do francês antigo que estará na sua origem e que significava «tributo imposto ao povo» (Dicionário Houaiss s.v. sisa). Por sua vez, a palavra francesa era o particípio passado substantivado de asseoir («assentar, colocar, pôr»), verbo que evoluíra do latim vulgar adsedēre, de sedēre, «estar sentado, assentar-se» (idem, ibidem).

 

1 Ver A. R. Gonçalves Viana, Vocabulário Ortográfico e Remissivo da Língua Portuguesa, 1913 (2.ª edição).

Pergunta:

Como classificamos as palavras «Invasões Francesas», nome próprio ou nome comum + adjetivo qualificativo?

Resposta:

Em relação ao período – 1807-1810 – durante o qual Portugal foi invadido três vezes pelas tropas napoleónicas, diz-se e escreve-se «Invasões Francesas», que é um nome próprio composto, formado  por um nome deverbal – invasão (de invadir) – e um adjetivo relacional – francesas, no plural –, com a função de complemento do nome.

Observe-se que invasão, como nome comum, é um nome eventivo (marca um evento) que deriva de um verbo, invadir (é, portanto, um nome deverbal)1. Assim como o sujeito deste verbo tem o papel semântico de agente («os Franceses invadiram Portugal»), também o nome derivado (invasão) pode ter associado um complemento com o mesmo papel semântico – caso de «dos Franceses» em «as invasões dos Franceses». Este complemento é frequentemente realizado por um grupo preposicional («invasões dos Franceses»), mas também é possível ocorrer um grupo adjetival – «invasões francesas» –com a mesma função sintática.

Acrescente-se que francês e as formas da sua flexão constituem não um adjetivo qualificativo, mas, sim, relacional, visto que francês deriva de um nome (França, um nome próprio), relativamente ao qual instancia uma relação de posse (francês =  «é da França, que pertence a este país»)2.

Convém dizer, por último, que a análise mais ou menos aprofundada de nomes próprios compostos como «Invasões Francesas» se pode justificar no ensino universitário, mas não no ensino secundário e muito menos nos primeiros anos da escolaridade.

1 Embora os radicais de invadir