Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Existe o termo "prateleiro" como «conjunto de prateleiras ou armário com prateleiros»?

Encontro uma abonação em José Régio in "A Porta e a Chava" publicado em Almanaque Bertrand 1968, pp. 125-127, depois em Davam Grandes Passeios aos Domingos... e outros contos (Lisboa, Ed. Associados, Col. "Unibolso", s.d., pp. 139-144) e, finalmente, nas obras completas in Contos e Novelas, Lisboa, INCM, 2007, pp. 403 e sgs.

Resposta:

Não é frequente mas também não é recente o registo dicionarístico do nome prateleiro com o exato significado indicado na pergunta. Com efeito, encontra-se prateleiro como sinónimo de prateleira quer no Vocabulário Português e Latino (1712), de Rafael Bluteau (1638-1734), quer mais tarde, na 1.ª edição (1789) do chamado "dicionário de Morais". Ambas as formas, prateleira e prateleiro, denotam geralmente uma tábua horizontal (ou estante), fixa a uma parede ou a parte de um armário, na qual se colocam objetos de vária ordem (supõe-se que inicialmente fossem pratos, dada a partilha da raiz prat-).

Contudo, por metonímia, podem ainda os dois vocábulos denominar um móvel constituído por várias tábuas com a referida função (cf. prateleira e prateleiro no Dicionário Houaiss, 1.ª edição, 2001; ver também dicionário de Caldas Aulete). O uso de prateleiro nesta última aceção chamou a atenção de J. Leite de Vasconcelos, que o registou numa recolha tradicionalmente conhecida como Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos, que hoje se encontra em linha, no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa: «prateleiro (masc.) ‘estante para pratos’. Almeirim. Vi e ouvi. 1916.»

Pergunta:

Considere-se a seguinte expressão:

«Quantas vezes ouvimos observações racistas feitas de um modo tão casual, tão inocente, que nem lhes respondemos.»

A interpretação deste segmento causou alguma polémica. Na minha interpretação, considero que, neste caso, casual significa «aleatório». Nesta linha de interpretação, o autor estaria a afirmar que muitas vezes se ouvem observações racistas aleatórias e inocentes.

No entanto, segundo a interpretação de outras pessoas, o autor teve como intenção referir que as observações racistas acontecem pontualmente, devido ao emprego do vocábulo casual. Não concordo com este ponto de vista, porque «muitas vezes» é uma expressão enfática, que salienta a frequência das observações racistas.

Poder-me-iam esclarecer acerca do significado deste vocábulo neste contexto, em específico?

Grato pela preciosa ajuda.

Resposta:

O adjetivo casual é polissémico, ou seja, pode ter vários significados. Com efeito, pode ser sinónimo quer de fortuito e aleatório, quer de ocasional e, portanto, também de pontual e «pouco frequente» (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Acresce que casual ocorre também com sentido de «informal», uso que se considera configurar um anglicismo semântico, por ser idêntico ao de casual em inglês1 (cf. dicionário de inglês-português da Infopédia).

Na frase em questão, o valor aspetual habitual da locução adverbial «quantas vezes (não...)» favorece efetivamente a leitura de casual como «fortuito», dado que interpretar este adjetivo como «ocasional, pontual, pouco frequente» seria contradizer o significado da locução. Mas a ocorrência em análise também não é incompatível com a locução se for entendida na aceção de «informal, descontraído».

Refira-se que a casual se associa ainda um outro significado que se afasta nitidamente dos acima comentados e que não é relevante para esta discussão: trata-se de quando o adjetivo se emprega como o mesmo que «relativo a caso», isto é, quando a palavra alude à categoria gramatical de caso2.

 

1 O Dicionário Houaiss observa que, como sinónimo de informal», casual «[...] é neológico e semanticamente anglicizante, registrando-se apenas no português do Brasil». Na verdade, também se regista no português de Portugal, como acontece no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que, sem mencionar uma eventual relação co...

Pergunta:

Recentemente tomei conhecimento que no Alentejo existem as ruínas de Ammaia, monumento nacional desde 1949. Não me lembro de alguma palavra em português com dois mm.

Tendo em conta que as ruínas fazem parte do território nacional, pergunto porque nunca terá sido feito o aportuguesamento deste nome? Especialmente tendo em conta que tantos outros lugares estrangeiros tiveram os nomes aportuguesados. Terá sido porque a identificação arqueológica terá sido relativamente recente (1935)?

Obrigado!

Resposta:

O nome latino Ammaia tem aportuguesamento: Amaia[1].

Não são claras as razões por que se usa a forma latina, e, portanto, não é aqui possível confirmar a explicação que o consulente propõe. Contudo, outra razão plausível será também o apelo turístico que um nome latino pode ter, apesar de o caso de Conímbriga, aportuguesamento do latim Conimbriga, constituir contraexemplo de uso corrente (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa). Note-se, ainda assim, que também ocorre Amaia, como acontece em casos de escrita académica (sublinhado nosso):

(1) «Reconhece-se hoje como seguro que a mais antiga referência escrita relacionada com Marvão é a crónica de Isa Ibn Áhmad ar-Rázi, datável do século X, onde se lê: ... o Monte de Amaia, conhecido hoje por Amaia de Ibn Maruán é um monte alto e inexpugnável [...].» (Jorge de Oliveira, "A fortificação de Marvão, origens e contexto", <...

Pergunta:

O verbo vidrar, com o significado de «ficar encantado, apaixonado ou muito interessado», é apenas aceite como português do Brasil?

Resposta:

Aceita-se o emprego de vidrar no sentido de «ficar encantado» também em Portugal, mas no registo informal: 

(1) «Quando se viram, ficaram vidrados um no outro.»

Entre dicionários produzidos em Portugal, refira-se que o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa classifica este uso como um brasileirismo, mas, sobre a sua relação com o português do Brasil, são omissos quer o dicionário de português da Infopédia quer o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Neste último, atribui-se a vidrar, entre outras aceções, a de «ficar completamente encantado por alguém ou por alguma coisa; ficar preso pela atenção, pelo instinto, pelo sentimento», à qual se associam as seguintes abonações:

(2) «Vidrou na rapariga mal a viu.»

(3) O rapaz vidrara naquele programa de televisão.»

Em textos literários, parece escassa ou muito recente a ocorrência de vidrar com este significado, como sugere a ausência de exemplos no Corpus do Português de Mark Davies. No entanto, tanto em textos portugueses como brasileiros, contam-se várias ocorrências de «olhos vidrados», expressão que, no entanto, tem diferente significado: «olhos embaciados, a que falta transparência» e, por extensão de significado, «olhos inexpressivos».

Pergunta:

Numa conversa entre colegas, uma afirmou: «e ele foi para a mesa com o barruço na cabeça.»

Perguntei-lhe: «"barruço" ou "garruço?"»

«Sim, eu digo barruço!»

Qual a forma correta, ou podem ser consideradas as duas?

Obrigada pela atenção dispensada.

Resposta:

Ambas as formas são possíveis, e não se exclui a hipótese de terem divergido da mesma palavra.

O dicionário Priberam regista as duas palavras: garruço e barruço; e o mesmo faz a Infopédia (cf. aqui e aqui). Nota-se, porém, que, nas referidas fontes, enquanto barruço tem como sinónimo barrete, a forma garruço é apresentada como sinónima de carapuço. Mas não é impossível que as duas formas possam ter os dois significados ao mesmo tempo, até porque a diferença entre barrete e carapuço (ou carapuça) pode não ser relevante em muitas situações.

Dito isto, convém assinalar que a consulta de outras fontes poderá sugerir que garruço e garruça são formas mais antigas que barruço. Com efeito, a Revista Lusitana (vols. II, 249; XI, 157; e XII, 313) e o Dicionário de Regionalismos de Leite de Vasconcelos permitem saber que, entre 1890 e meados do século XX, se usavam os termos garruço e garruça nos distritos de Viseu (Penedono), da Guarda (Atalaia e Celorico da Beira) e de Castelo Branco (Aldeia de Santa Margarida, no concelho de Idanha-a-Nova). Contudo, as mesmas fontes não atestam barruço, o que deixará pensar  que esta for...