Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se o termo "desumilde" existe, visto vir mencionado na Infopédia da Língua Portuguesa.

Agradeço desde já a melhor atenção.

Resposta:

Geralmente, o registo dicionarístico de uma palavra já é indicativo da sua existência. No caso, o registo de desumilde não só se encontra na Infopédia, mas também no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Poderia pensar-se que estes são dicionários que, por serem eletrónicos e estarem em linha, têm tendência a dar entrada a palavras novas (neologismos), eventualmente de uso discutível.

Consultando um dicionário mais antigo, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (1991), de José Pedro Machado, observa-se, porém, que também aqui figura desumilde. Mas o uso deste adjetivo será muito mais antigo. Com efeito, ocorre numa atestação de Camilo Castelo Branco (1825-1990), incluída no registo que o Dicionário de Caldas Aulete (consultou-se a versão em linha) faz da palavra:

«desumilde adj. || que não é humilde; em que não há humildade: Acontece o mesmo em toda a parte – contrariou Fernando com certo desabrimento desumilde. ( Camilo, Agulha em Palheiro, c. 2, p. 29. ed. 1865.) F. Des... +humilde

Em suma, desumilde existe, tem uso atestado há, pelo menos, 150 anos e está correto.

Pergunta:

Tenho encontrado alguma validação da forma "Marráquexe". No entanto, esta formulação parece-me tão bizantina que só posso perguntar se faz mesmo sentido. Não será antes "Marraquexe", como se costuma ler?

Obrigado.

Resposta:

Atualmente, a forma Marraquexe, que se aceita como correta, é a mais corrente e impôs-se pela força do uso, pelo menos, a avaliar pela sua sistemática presença em textos de promoção turística. Contudo, tem tradição normativa a grafia com acento, ou seja, o nome de acentuação esdrúxula, Marráquexe.

Com efeito, Marráquexe é a única forma que figura no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 1940. Também é a forma classificada como portuguesa ou aportuguesada por I. Xavier Fernandes, no seu Topónimos e Gentílicos (Porto, Editora Educação Nacional, 1941, p. 66), no qual as grafias Marraquexe e Marraqueche aparecem entre as formas estrangeiras ou mal aportuguesadas. Anos mais tarde, encontra-se novamente Marráquexe, como forma correta em Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958) e é com só esta grafia que o nome se fixa no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves.

A forma Marraquexe, que hoje parece dominante e, portanto, se tornou aceitável (pelo menos, no Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras), deve-se provavelmente a analogia com o francês Marrakech. Mas é irónico constatar que também a forma esdrúxula Marráquexe foi avaliada com reserva e até rejeitada no passado; por exemplo, num artigo de 1922, o arabista português 

Pergunta:

O meu apelido é Gameiro... e na minha família, que vive em Lisboa há três gerações, sempre pronunciámos o nosso apelido como não sendo uma palavra exdrúxula. Havia apenas dois telefones em Lisboa com este apelido.

Penso que pós-25 de Abril passou a haver mais famílias na cidade... como um cantor... e agora passei a ter o apelido oral de "gàmeiro", o que não é o meu apelido.

Gostava de saber qual a pronúncia correcta.

Com os meus melhores agradecimentos.

[N.E. – A consulente escreve correcta, conforme a antiga ortografia (a do Acordo Ortográfico de 1945). No quadro do Acordo Ortográfico de 1990, grafa-se correta.]

Resposta:

O apelido escreve-se Gameiro, mas há variantes de pronúncia.

É provável que Gameiro tenha origem num derivado de gamo, talvez pelo uso toponímico de gameiro, como alusão a «lugar gameiro», isto é, «lugar onde há gamos» (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, 2003)1. Sendo assim, a pronúncia mais previsível deste nome é com a fechado", tendo em conta que a vogal figura numa sílaba átona.

Note-se, porém, que, em matéria de nomes próprios, há certa margem de tolerância para com pronúncias que não correspondam ao padrão ou às regras de correspondência entre letras e sons. Deste modo, embora gameiro com a fechado pareça a pronúncia recomendável, não se justifica considerar que "gàmeiro"1 com a aberto átono constitui um claro erro.

Esclareça-se também que, em "Gàmeiro", ou seja, na variante com a aberto átono, esta vogal se mantém átona, sem afetar a prosódia do nome. Por outras palavras, mesmo que o nome seja pronunciado com a aberto – talvez por analogia com casos como os de Sameiro ou saveiro , que soam respetivamente "sàmeiro" e "sàveiro –, o nome em questão não passa a palavra exdrúxula. Pelo contrário, "gàmeiro" é sempre palavra grave, tal como a forma recomendada, "gameiro".

 

1 O apelido Gameiro

Pergunta:

A palavra «icástica» define um significado que pode ter dubiedade quando sugere opinião pessoal, ou seja, quando quero defender minha posição? Ou ela refere um significado único que não pode ser contraposto?

Resposta:

O adjetivo icástico (icástica no feminino) significa «que representa ou reproduz com exatidão e fidelidade (uma ideia, um objeto)» e «sem artifícios; natural, simples» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009). Não se confunde, portanto, com dúbio, que dá a base donde deriva o nome dubiedade; pelo contrário, é sinónimo de icónico, «que representa ou reproduz com exatidão e fidelidade» (idem, ibidem). Não se pense, porém, que a possibilidade de classificar alguma representação como icástica impede as ambiguidades ou dubiedades que possam eventualmente fazer parte de uma ideia ou de um objeto.

Acrescente-se que este adjetivo tem origem no grego eikastikós, , ón «relativo à apresentação de objetos, relativo à arte de conjecturar» (idem, ibidem).

Pergunta:

Gostaria de saber se a concordância verbal do verbo fazer, na terceira pessoa do singular, no impessoal, se utiliza para referir estados atmosféricos (ex. «Faz calor»), ou se apenas se utiliza para referir o tempo decorrido (Ex. «Faz dez anos»), tendo em conta as regras do português europeu e a diferença com o português do Brasil.

Obrigada.

Resposta:

O verbo usa-se nos dois casos:

(1) «Faz dez anos.» (construção típica do Brasil)

(2) «No Alentejo, faz muito calor.» (usa-se em ambas as variedades)

Há várias respostas no Ciberdúvidas, umas mais conservadoras e outras mais atualizadas (ver Textos relacionados). O que delas mais ressalta é a ocorrência de faz, a introduzir expressões de tempo cronológico, ser mais previsível nas variedades linguísticas do Brasil do que em Portugal. Com efeito, uma consulta do Corpus do Português (coordenado por Mark Davies) permite detetar essa diferença: o esquema «faz n anos» tem 32 ocorrências em textos brasileiros, em claro contraste com 10 ocorrências provenientes de textos identificáveis com o português de Portugal. Esta pesquisa não exclui, porém, a construção «faz hoje n anos que...» (p. ex., «faz hoje 100 anos que se assinou o armistício»), que parece ter a mesma frequência nas duas variedades.