Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na expressão «Houve até cartazes afixados nas paredes que aludiam à integridade territorial do império», o adjetivo territorial desempenha a função sintática de complemento do nome ou de modificador do nome?

Antecipadamente grata.

Resposta:

O adjetivo territorial desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo.

Embora o adjetivo territorial seja um adjetivo relacional, neste caso particular não desempenha a função de complemento do nome porque não se trata de um argumento pedido pelo nome. O nome integridade não é deverbal (formado a partir de um verbo) pelo que não se associa a complementos. Para além disso, o adjetivo territorial tem uma função classificatória, ou seja, associa-se ao nome criando um subtipo de integridade. Assim «integridade territorial» denota um tipo diferente da «integridade fluvial» ou da «integridade nacional»1.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre adjetivos relacionais classificadores, cf. Veloso e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português.  Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1378-1379.

Pergunta:

No título "Amor de perdição: um bom romance canonizado pelas razões erradas", retirado de Luís Miguel Queirós in https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/amor-de-perdicao-um-bom-romance-canonizado-pelas-razoes, o ato ilocutório, se bem que expresse uma opinião do autor, não será assertivo, pois não apresenta um estado de espírito do locutor, mas sim afirma o que o mesmo pensa do romance?

Quanto muito, pelo que investiguei, os adjetivos "bom" e "erradas" retiram alguma força de assertividade ao ato?

Grata pela atenção.

Resposta:

Antes de mais, e visto que a teoria dos atos de fala opera com o conceito de proposição, deveremos considerar que o enunciado apresentado é elítico, sendo equivalente à proposição com o verbo ser:

(1) «Amor de perdição é um bom romance canonizado pelas razões erradas.»

No que respeita aos atos ilocutórios expressivos, teremos de começar por considerar que o seu objetivo é o de expressar emoções, sentimentos, avaliações, juízos de valor ou desejos, ao passo que os atos ilocutórios assertivos têm como objetivo expressar a crença na verdade da proposição expressa. 

Entre os atos ilocutórios expressivos, há quem considere a expressão da opinião1, no sentido de o ato ilocutório ser também avaliativo. Nesse sentido, o enunciado seguinte configura um ato ilocutório expressivo:

(2) «Que lindo arranjo de flores.»

Nesta ordem de pensamentos, poderemos considerar que o enunciado presente em (1) como um ato ilocutório expressivo, que será equivalente a (3):

(3) «Infelizmente, Amor de perdição é um bom romance que foi canonizado.»

Poderemos também aventar a hipótese de estarmos perante um ato ilocutório híbrido, que conjuga o assertivo com o expressivo, tal como se descreveu nesta resposta

De qualquer forma, pelo facto de esta classificação ser discutível e de estarmos perante uma situação que se encontra na margem dos atos considerados prototípicos, a análise e classificação deste enunciado não se ajustará ao tipo de abordagem feita no ensino não universitário.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Podem me ajudar quanto à classificação das seguintes frases?

• Faça uma boa viagem!

• Um ótimo dia!

• Siga-me!

• Xô preguiça!

Penso que as duas primeiras são optativas e as duas últimas são imperativas, mas me falaram que a primeira e a terceira são imperativas e a segunda e a última são optativas. Qual a classificação correta?

Resposta:

As frases optativas caracterizam-se por expressarem um desejo do locutor, ou seja, tipicamente, expressam um ato ilocutório expressivo1:

(1) «Que seja feliz!»

Estas frases podem ser construídas com a elipse do elemento que verbaliza o desejo, como em (2), onde se omite um complementador como «que» ou «Eu desejo que»:

(2) «Pudesses tu ajudá-la.»

As frases imperativas expressam uma ordem, ou seja, tipicamente, expressam um ato ilocutório diretivo2:

(3) «Senta-te.»

Tendo em consideração estes aspetos, poderemos classificar da seguinte forma as frases apresentadas pela consulente:

(i) frases optativas:

    − «Faça uma boa viagem!»

    − «Um ótimo dia!»

Estas são frases optativas elípticas, pois verifica-se a elisão do elemento complementador, mas expressam claramente um desejo por parte do locutor.

(ii) frases imperativas:

     − «Siga-me!»

   ...

Pergunta:

Eu gostaria de saber com qual pessoa gramatical o verbo que segue os sujeitos ligados pela conjunção ou deve concordar.

Exemplo:«Ou tu ou eu pago/pagas a conta»

No exemplo, a ação verbal só pode ser exercida por uma das pessoas.

Napoleão Mendes de Almeida diz que, quando os sujeitos são de números diferentes, o verbo vai para o plural; só que, nos exemplos que ele deu para esta regra, ambos os sujeitos são de terceira pessoa.

Obrigado antecipadamente.

Resposta:

Quando os pronomes se encontram coordenados pela conjunção ou, o verbo faz a concordância na 1.ª pessoa do plural:

(1) «Ou tu ou eu pagamos a conta.»

Note-se, todavia, que esta concordância implica uma leitura inclusiva do valor da conjunção ou. Isto significa que a frase (1) é equivalente a (2):

(2) «Eu e tu pagamos a conta.»

No entanto, se pretendermos que ou tenha uma leitura exclusiva (ou seja, que sinalize apenas um dos elementos do sujeito), a frase terá de ter outra sintaxe. Ela poderá ter uma estrutura como a que se apresenta, por exemplo, em (3):

(3) «Alguém paga a conta: ou eu ou tu.»

Pelo que ficou dito, a concordância do verbo com a 1.ª ou 2.ª pessoa é, no caso em análise, incorreta.

Disponha sempre!

Pergunta:

Leciono o 3.º ano de escolaridade e estou a trabalhar as funções sintáticas sujeito e predicado. No meu tempo de estudante, ensinavam-nos que o predicado é a ação que é praticada pelo sujeito. Mais tarde, em seminários de Gramática num curso de mestrado, fiquei com a ideia de que não é correto falarmos em "ação", pois nem todos os verbos pressupõe ação, mas um estado.

Consciente da importância desta primeira abordagem para jovens estudantes, a quem não quero transmitir informações erradas sob pena de comprometer as necessárias competências da disciplina de português, solicito e agradeço um parecer.

Como devo ensinar os meus meninos?

Eu costumo dizer: o sujeito é aquele acerca de quem estamos a falar, como se fosse a personagem principal da frase e o predicado é "aquilo que temos a dizer acerca do sujeito" ou a "que informação tenho acerca do sujeito", o que nem sempre há uma ação, como ocorre nas seguintes frases" A mãe é adulta" ou "A Ana está crescida!".

Grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Com efeito, a didática da gramática no 1.º ciclo exige uma reflexão ponderada sobre os processos a adotar no sentido de desenvolver a consciência gramatical nos alunos. Ainda que este um espaço não seja especializado em didática, deixamos, todavia, algumas pistas que a professora deverá ajustar à realidade da sua turma.

Comecemos por referir que as noções de sujeito e predicado envolvem conhecimentos de natureza sintática que nem sempre estão disponíveis para alunos do 1.º ciclo. Não obstante, poderemos abordar o sujeito de uma perspetiva sintático-semântica, no sentido de definir a sua essência. Nesse sentido, o sujeito poderá ser descrito como a entidade sobre a qual se afirma algo. Gradualmente, os alunos poderão também começar a utilizar as questões que auxiliam a identificar esta função: as perguntas «quem + verbo» ou «o que + verbo», embora não identifiquem o sujeito em todas as situações, são um bom auxílio. Depois de abordarem os pronomes pessoais, os alunos poderão também aprender que o sujeito é o constituinte que pode ser substituído por ele/ela(s).

Já o predicado poderá ser descrito como aquilo que se afirma sobre o sujeito. Será nalgumas situações o constituinte que responde à questão «o sujeito fez o quê?», devendo os alunos compreender que a resposta deverá ser maximizada (ou seja, envolver o verbo, seus complementos e seus modificadores).

Para dar início ao estudo da sintaxe no 1.º ciclo, também se pode ponderar a hipótese de considerar a posição típica dos constituintes: o sujeito coloca-se à esquerda do verbo e o predicado à direita do sujeito. Naturalmente, esta abordagem terá de ser desconstruída à medida que os alunos se apercebem que, entre outros, os modificadores do grupo verbal são dotados de grande mobilidade.

Importante será conseguir despertar nos alunos a curiosidade pelos fenómenos gramaticais de ...