Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sou professora de português do 2.º ciclo e precisava da vossa ajuda na seguinte situação: no passado ano letivo (5.º ano) começou a aparecer nos manuais escolares a interjeição como classe de palavras e como recurso expressivo.

Parece-me estranho porque no mesmo livro acabamos por ter um termo – interjeição – associado a dois conteúdos diferentes. Esta situação causa alguma confusão na cabeça dos alunos. Gostaria de saber se, do ponto de vista científico, é correto existir esta situação.

Muito obrigada.

Resposta:

A interjeição, como aliás outras classes de palavras, pode ser analisada do ponto de vista da sua inserção numa das classes em que se organizam as palavras de uma língua. Neste campo, note-se que a consideração da interjeição como uma classe de palavras a par do nome, do verbo ou do adjetivo não é pacífica entre os gramáticos. Com efeito Cunha e Cintra afirmam: «Não incluímos a interjeição entre as classes de palavras pela razão aduzida à página 78.» e, mais à frente, «Com efeito, traduzindo sentimentos súbitos e espontâneos, são as interjeições gritos instintivos, equivalendo a frases emocionais.» e mais à frente «Não incluímos a interjeição entre as classes de palavras pela razão aduzida no capítulo 5.»1

No Dicionário Terminológico, a interjeição é apresentada como uma classe de palavras, com a seguinte descrição: «Palavra invariável que pertence a uma classe aberta. Uma interjeição não estabelece relações sintácticas com outras palavras e tem uma função exclusivamente emotiva. O valor de cada interjeição depende do contexto de enunciação e corresponde a uma atitude do falante ou enunciador.»

Como se observa, a definição da classe da interjeição assenta em critérios de natureza semântico-pragmática.

Até em coerência com as descrições apresentadas, verifica-se que é possível analisar as interjeições do ponto de vista dos recursos linguísticos que têm uma função expressiva no plano textual. Partindo deste ângulo de análise, podemos identificar num texto a função expressiva da interjeição. Recordemos, apenas a título de exemplo, a importância da interjeição como recurso de expressividade na Ode triunfal de Álvaro de Campos:

 

Ah, poder expr...

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte dúvida: no segmento abaixo transcrito, pede-se para identificar e explicar os processos de referenciação anafórica em destaque. Como proceder?

«A epopeia Os Lusíadas é uma obra emblemática, constituída por dez cantos, com a qual Camões, seu autor, homenageia o povo português. O poeta fá-lo através da Viagem do Gama à Índia e da História de Portugal, não esquecendo os deuses romanos, salientando-se Júpiter, Vénus e Baco.»

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

Recordemos, antes de mais, que os processos de referenciação anafórica dizem respeito à relação entre palavras de um texto, na qual a interpretação de uma expressão (termo anafórico) depende de outra expressão presente no texto (o antecedente). O sentido do termo anafórico pode depender do antecedente (são termos correferentes) ou parte do seu significado é independente e relaciona-se com o do antecedente (são termo não correferentes).

No segmento em apreço, podemos identificar vários processo de anáfora. Vejamos, pela ordem pela qual surgem:

(1) «obra» ─ anáfora correferencial (nominal por hiperonímia)

(2) «a qual» ─ anáfora correferencial pronominal

(3) «seu» ─ anáfora correferencial 

(4) «autor» ─ anáfora não correferencial por nominalização

(5) «O poeta» ─ anáfora não correferencial por nominalização

(6) «-lo» ─ anáfora não correferencial por pronominalização (resumativa)

(7) «Júpiter, Vénus e Baco» ─ anáfora correferencial (nominal por hiponímia)

Disponha sempre!

A relação entre as palavras <i>dicionário</i> <br>e <i>glossário</i>
A especialização do léxico

Qual a diferença entre as palavras dicionário e glossário? A professora Carla Marques aborda a questão na rubrica divulgada no programa Páginas de Português, na Antena 2  (dia 25 de maio de 2025).

Pergunta:

Gostaria de saber a função sintática da expressão «sabedoria, à-vontade na discussão dos grandes temas», na frase «Os benefícios são inegáveis: sabedoria, à-vontade na discussão dos grandes temas».

Muito obrigada.

Resposta:

As funções sintáticas definem-se relativamente a uma palavra nuclear, que é tipicamente um verbo, mas também poderá ser um nome, um adjetivo ou outra classe de palavras.

No caso em apreço, o constituinte «sabedoria, à-vontade na discussão dos grandes temas» não se relaciona com nenhum termo da oração anterior, pelo que não desempenha uma função sintática.

O constituinte está ao serviço de uma intenção anunciada pelo recurso aos dois pontos: constitui uma enumeração dos benefícios referidos na oração anterior.

Disponha sempre!

Pergunta:

Num texto de 13 de maio, é afirmado que o pronome pessoal se, na frase «Ouviram-se os jovens», tem a função de complemento agente da passiva.

Penso que é errado e fundamento-me na Gramática do Português, da Fundação Gulbenkian, vol. I, pág. 390-394; 444-445.

No contexto do ensino do português, o Dicionário Terminológico considera complemento agente da passiva o grupo preposicional presente numa frase passiva que corresponderia ao sujeito da frase ativa.

Neste sentido, gostaria de conhecer bibliografia que considere agente da passiva o morfema se em passivas pronominais.

Obrigado.

Resposta:

Não temos conhecimento, de facto, de uma gramática que analise a partícula se no âmbito do quadro gramatical usado no ensino básico e secundário.

No entanto, tanto na Gramática do português (Raposo et al.) como na Gramática da língua portuguesa (Mateus et al,) se considera que o agente externo (ou seja, o sujeito da frase ativa) não pode ocorrer no interior do sintagma verbal da passiva sintética, o que, na língua portuguesa contemporânea, explica a impossibilidade de :

(1) *Ouviram-se os jovens pelos professores.

Na passiva canónica, o agente externo ocorre na posição de agente da passiva:

(2) «Os alunos foram ouvidos pelos professores.»

O facto de em (1) não ser possível verbalizar o agente externo («pelos professores») implica que, como se explica na Gramática da Língua Portuguesa, «o agente é necessariamente implícito, com uma interpretação indeterminada». (p. 391).

A este propósito, afirmam Peres e Móia, em Áreas críticas da língua portuguesa, que nestas construções o argumento com a função de agente é sempre indeterminado, «estando provavelmente representado pelo próprio clítico» (p. 213). A interpretação que aqui seguimos enquadra-se nesta linha, o que nos leva a colocar a hipótese de o clítico se poder estar a preencher a função de complemento agente da passiva no caso das passivas sintéticas. Note-se, por fim, que, em contexto didático, não é usual fazer a análise do clítico, até porque não é pacífica a interpretação.

Disponha sempr...