Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O segmento «A vida mais uma vez tinha virado. Agora verificava a ordem dos armazéns, o bom estado dos navios, controlava as cargas e as descargas, discutia negócios e contratos. As suas viagens iam-se tornando rápidas e espaçosas.» – é um momento de descrição ou de narração?

Resposta:

Poderemos considerar, de forma genérica e com intuitos didáticos, que o texto em análise, extraído do conto Saga de Sophia de Mello Breyner Andresen, apresenta um momento de descrição. No entanto, o segmento textual evidencia traços híbridos.

Os segmentos narrativos são caracterizados, entre outros aspetos, por uma sucessão de eventos organizados numa cadeia temporal, os quais conduzem ao desenvolvimento de ações e à transformação de predicados1. Por seu turno, a descrição assenta na enumeração de características ou factos que permitem um melhor conhecimento de uma situação, um local ou uma personagem.

No caso em apreço, a enumeração de atividades desenvolvidas pela personagem pode apontar para o desenvolvimento do modo de descrição. No entanto, não se trata de uma descrição estática, pelo que poderemos considerar que estaremos perante um caso de descrição dinâmica que, segundo Paz assume os seguintes traços: «a descrição dinâmica, a que alguns chamam “exposição narrativa”, devido à sua proximidade da narração, e que regista a indicação clara, por ordem cronológica ou lógica, das diversas fases do processo em causa.»

O facto de se tratar de um caso marcado por algum hibridismo está presente no facto de se usar a enumeração e de se recorrer ao pretérito imperfeito do indicativo. No entanto, existe alguma temporalidade associada à apresentação das situações no segmento, que aponta para o dinamismo próprio da narrativa.

Disponha sempre!

 

1. Segue-se, em linhas gerais, a proposta de Jean-Michel Adam para a caracterização da sequência narrativa. Cf.  

Casos de contração
Preposição e artigo seguidos de infinitivo

Nesta semana, a professora Carla Marques esclarece as situações em que a preposição de não contrai com o artigo definido.

(Programa Páginas de Português, da Antena 2, de 19/01/2024)

Pergunta:

A modalidade expressa nas frases «As mulheres do meu país é uma das obras mais notáveis de sempre sobre a sociedade portuguesa» e «É verdadeiramente admirável e arrepiante a coragem e a determinação de Maria Lamas» é apreciativa ou epistémica com valor de certeza?

Grata pela atenção.

Resposta:

Em ambas as frases identificamos a presença da modalidade apreciativa

Por meio da modalidade expressiva, o locutor expressa um juízo de valor, uma apreciação sobre um enunciado já dado como válido.

Assim, as frases apresentadas assentam sobre os enunciados seguintes:

(1) «As mulheres do meu país é uma obra sobre a sociedade portuguesa.»

(2) «Maria Lamas tem coragem e determinação.»

A apreciação é, deste modo, feita aos enunciados anteriores por meio da adjetivação: «uma das mais notáveis», no primeiro caso, e «verdadeiramente admirável e arrepiante», no caso da frase (2).

Disponha sempre!

Pergunta:

Aproveito para desejar um excelente 2025 a todos os que integram esta fabulosa equipa do Ciberdúvidas.

A questão que me traz hoje aqui é alusiva às frases construídas com o quantificador universal cada.

Pelas minhas pesquisas, descobri que designa qualquer elemento de um grupo de forma individual. Também pude observar que, da mesma maneira, se anteceder um nome, também retrata individualmente qualquer elemento de um grupo. No entanto, se houver elementos coletivos numa frase para incluir, o meu raciocínio não está tão claro. Vejamos os seguintes exemplos:

(I) «Os fogos de artifício revelaram-se um espetáculo digno de cartão-postal. Cada um mais colorido que o outro, ofuscava momentaneamente as estrelas e contrastava com as luzes dos colossais edifícios da cidade.»

A minha dúvida surge nas conjugações verbais da segunda oração. Ainda que me pareçam corretas, deveria mantê-las na terceira pessoa do singular? Às vezes, quanto mais leio uma frase mais ambígua me soa. Podiam esclarecer-me esta dúvida, por favor?

Obrigada!

Resposta:

A concordância do verbo na 3.ª pessoa do singular está correta, embora a concordância no plural seja possível. 

No caso em apreço, o verbo concorda com a locução «cada um», que gera concordância na 3.ª pessoa do singular. Tal fica mais evidente se simplificarmos o grupo nominal:

(1) «Cada um ofuscava momentaneamente as estrelas e contrastava com as luzes dos colossais edifícios da cidade.»

Note-se que a locução «cada um» permite referir  todos os elementos de um conjunto ou grupo determinado, considerando cada um de forma individual. Por essa razão, desencadeia concordância na  3.ª pessoa do singular. 

Seria possível pensar numa concordância no plural que subentenda o sujeito eles, como em (2):

(2) «Os fogos de artifício revelaram-se um espetáculo digno de cartão-postal. (Eles), cada um mais colorido que o outro, ofuscava momentaneamente as estrelas e contrastava com as luzes dos colossais edifícios da cidade.»

Neste caso, o constituinte «cada um mais colorido que o outro» desempenha a função de modificador apositivo do nome, apresentado uma informação acessória sobre o antecedente do pronome eles, neste caso, «os fogos de artifício».

Disponha sempre!

Pergunta:

Considerando a expressão «naquele sótão» e encontrando-se sublinhada a palavra naquele, ao pedir para identificar a classe da palavra sublinhada, devo considerar correto quando alguém responde que a palavra «é preposição contraída (junção da preposição em com o determinante)»?

Grata.

Resposta:

Com efeito, a classificação está correta.

A contração é um processo de natureza fonológica e morfológica que consiste na fusão de duas palavras. No entanto, cada uma delas mantém a sua natureza sintática, o que implica que se considere que, numa contração, estamos em presença de duas palavras pertencentes a classes distintas.

Deste modo, na palavra naquele identificamos a preposição em e o determinante demonstrativo aquele, ou seja, duas palavras pertencentes a classes distintas.

Disponha sempre!