Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte dúvida: no segmento abaixo transcrito, pede-se para identificar e explicar os processos de referenciação anafórica em destaque. Como proceder?

«A epopeia Os Lusíadas é uma obra emblemática, constituída por dez cantos, com a qual Camões, seu autor, homenageia o povo português. O poeta fá-lo através da Viagem do Gama à Índia e da História de Portugal, não esquecendo os deuses romanos, salientando-se Júpiter, Vénus e Baco.»

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

Recordemos, antes de mais, que os processos de referenciação anafórica dizem respeito à relação entre palavras de um texto, na qual a interpretação de uma expressão (termo anafórico) depende de outra expressão presente no texto (o antecedente). O sentido do termo anafórico pode depender do antecedente (são termos correferentes) ou parte do seu significado é independente e relaciona-se com o do antecedente (são termo não correferentes).

No segmento em apreço, podemos identificar vários processo de anáfora. Vejamos, pela ordem pela qual surgem:

(1) «obra» ─ anáfora correferencial (nominal por hiperonímia)

(2) «a qual» ─ anáfora correferencial pronominal

(3) «seu» ─ anáfora correferencial 

(4) «autor» ─ anáfora não correferencial por nominalização

(5) «O poeta» ─ anáfora não correferencial por nominalização

(6) «-lo» ─ anáfora não correferencial por pronominalização (resumativa)

(7) «Júpiter, Vénus e Baco» ─ anáfora correferencial (nominal por hiponímia)

Disponha sempre!

A relação entre as palavras <i>dicionário</i> <br>e <i>glossário</i>
A especialização do léxico

Qual a diferença entre as palavras dicionário e glossário? A professora Carla Marques aborda a questão na rubrica divulgada no programa Páginas de Português, na Antena 2  (dia 25 de maio de 2025).

Pergunta:

Gostaria de saber a função sintática da expressão «sabedoria, à-vontade na discussão dos grandes temas», na frase «Os benefícios são inegáveis: sabedoria, à-vontade na discussão dos grandes temas».

Muito obrigada.

Resposta:

As funções sintáticas definem-se relativamente a uma palavra nuclear, que é tipicamente um verbo, mas também poderá ser um nome, um adjetivo ou outra classe de palavras.

No caso em apreço, o constituinte «sabedoria, à-vontade na discussão dos grandes temas» não se relaciona com nenhum termo da oração anterior, pelo que não desempenha uma função sintática.

O constituinte está ao serviço de uma intenção anunciada pelo recurso aos dois pontos: constitui uma enumeração dos benefícios referidos na oração anterior.

Disponha sempre!

Pergunta:

Num texto de 13 de maio, é afirmado que o pronome pessoal se, na frase «Ouviram-se os jovens», tem a função de complemento agente da passiva.

Penso que é errado e fundamento-me na Gramática do Português, da Fundação Gulbenkian, vol. I, pág. 390-394; 444-445.

No contexto do ensino do português, o Dicionário Terminológico considera complemento agente da passiva o grupo preposicional presente numa frase passiva que corresponderia ao sujeito da frase ativa.

Neste sentido, gostaria de conhecer bibliografia que considere agente da passiva o morfema se em passivas pronominais.

Obrigado.

Resposta:

Não temos conhecimento, de facto, de uma gramática que analise a partícula se no âmbito do quadro gramatical usado no ensino básico e secundário.

No entanto, tanto na Gramática do português (Raposo et al.) como na Gramática da língua portuguesa (Mateus et al,) se considera que o agente externo (ou seja, o sujeito da frase ativa) não pode ocorrer no interior do sintagma verbal da passiva sintética, o que, na língua portuguesa contemporânea, explica a impossibilidade de :

(1) *Ouviram-se os jovens pelos professores.

Na passiva canónica, o agente externo ocorre na posição de agente da passiva:

(2) «Os alunos foram ouvidos pelos professores.»

O facto de em (1) não ser possível verbalizar o agente externo («pelos professores») implica que, como se explica na Gramática da Língua Portuguesa, «o agente é necessariamente implícito, com uma interpretação indeterminada». (p. 391).

A este propósito, afirmam Peres e Móia, em Áreas críticas da língua portuguesa, que nestas construções o argumento com a função de agente é sempre indeterminado, «estando provavelmente representado pelo próprio clítico» (p. 213). A interpretação que aqui seguimos enquadra-se nesta linha, o que nos leva a colocar a hipótese de o clítico se poder estar a preencher a função de complemento agente da passiva no caso das passivas sintéticas. Note-se, por fim, que, em contexto didático, não é usual fazer a análise do clítico, até porque não é pacífica a interpretação.

Disponha sempr...

Pergunta:

Na frase «Temos de contribuir para que se limite o aumento da temperatura mundial», há quem diga que «para que se limite o aumento da temperatura mundial» é uma oração subordinada substantiva completiva e desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

Queria, contudo, saber como explicar o «para que», porque, nas gramáticas, aparece como uma locução subordinativa conjuncional final, que, por sua vez, introduz orações subordinadas adverbiais finais.

Obrigada pela vossa atenção.

Resposta:

O facto de as palavras para e que surgirem seguidas numa frase não significa que estejamos perante uma locução conjuncional. Há que analisar o comportamento das unidades lexicais e verificar se o seu comportamento é compatível com o de uma locução. Um dos procedimentos possíveis é o da comutação de unidades.

Assim, se cotejarmos a frase transcrita em (1) com a frase apresentada em (2), verificamos que o constituinte «a limitação do aumento da temperatura mundial» surge no lugar de «que se limite o aumento da temperatura mundial»:

(1) «Temos de contribuir para que se limite o aumento da temperatura mundial.»

(2) «Temos de contribuir para a limitação do aumento da temperatura mundial.»

Identificamos, em ambas as frases, a preposição para, o que nos permite duas conclusões:

i) se estivéssemos perante a locução «para que» ela teria desparecido em (2), o que não se verificou;

ii) a manutenção da preposição para deve-se à sua relação com o verbo contribuir: ela é, de facto, regida por este verbo.

Vejamos o que acontece se substituirmos o verbo contribuir por outro equivalente, como decidir:

(3) «Temos de decidir que se limite o aumento da temperatura mundial.»

Esta comutação mostra que a oração «que se limite o aumento da temperatura mundial» é uma subordinada completiva do verbo decidir.

No caso da oração «que se limite o aumento da temperatura mundial», presente na frase (1), estamos perante um complemento do verbo, pelo que a oração é também completiva, introduzida pela conjunção subordinativa que, mas esta oração faz parte de um constituinte ...