Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
119K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Diz-se "despegar" ou "desapegar"?

Resposta:

Os dois verbos podem ser usados como sinónimos em determinados contextos.

Assim, é possível usar ambos os verbos quando se descreve o ato físico de «desunir, separar o que se encontra ligado; quebrar a união entre dois ou mais elementos»1. Os verbos são também equivalentes ao serviço da descrição do ato de separação entre duas pessoas: «distanciar-se, alguém, de outrém; afastar-se, uma pessoa, de outra afetivamente» ou também «perder, alguém, a afeição por outrem»

Já só se usará o verbo despegar com o sentido de «interromper uma atividade ou o trabalho»:

(1) «Despego às 17h.»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da língua portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

É correto dizer-se «estavam três carros ardidos»?

Soa-me bastante melhor «estavam três carros queimados», mas não sei qual o fundamento na gramática para esta questão.

Também não me faz sentido se considerar a opção de o carro ter sido ardido porque, na verdade, eu posso queimar algo, mas não posso arder algo.

Obrigada.

Resposta:

As duas possibilidades estão corretas. Todavia, poderão veicular significados ligeiramente distintos.

O verbo arder é intransitivo e significa «estar em chamas, estar a ser consumido pelo fogo»1.

Deste modo, o grupo nominal «carro ardido» significa «carro que foi consumido pelo fogo»1. O uso da forma participial ardido contribui para a expressão de um valor perfetivo, de situação concluída, fechada.

Por seu turno, o verbo queimar é transitivo direto e significa «consumir ou destruir alguma coisa pelo fogo reduzindo-a a cinzas». A natureza da forma verbal associada ao uso do particípio, para além do valor perfetivo, inclui o valor de um agente que é responsável pela ação de destruir algo por meio do fogo.

Deste modo, o grupo nominal «carro queimado» expressa a noção de que existiu um agente responsável pelo estado do carro, ao passo que o grupo nominal «carro ardido» privilegia o estado do carro e não o responsável por ele. De qualquer forma, estas nuances nem sempre são sentidas pelos falantes, que poderão usar ambas as construções com sentidos muito próximos.

Disponha sempre.

 

1. Dicionário da língua portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

Na frase «Cesário Verde foi dizer para a cidade de Lisboa...», o segmento «de Lisboa» desempenha a função sintática de complemento do nome ou modificador do nome restritivo?

Obrigada

Resposta:

O caso em apreço constitui uma situação particular associada aos nomes próprios.

O constituinte «cidade de Lisboa» é um grupo nominal constituído por um nome nuclear (cidade), que, neste caso, descreve a categoria da entidade referida e que permite incluí-la na toponímia (nomes de lugar, localidade). Este nome é seguido de outro, o nome próprio Lisboa, que contribui para individualizar a entidade referida e que, neste caso, é introduzida pela preposição de.

Como afirmam Raposo e Nascimento, «[p]ode-se, em princípio, propor que todos os nomes próprios, incluindo os canónicos, se caracterizam por ter um classificador descritivo da categoria ontológica a que pertencem, o qual é implícito no caso dos nomes próprios canónicos. […] Para os topónimos, o classificador implícito é o termo geral ‘lugar’, realizado frequentemente através de hipónimos como cidade, cordilheira, oceano, rio, vila […]”1.

Do ponto de vista sintático, estas construções não têm instrumentos de análise no ensino básico e secundário, pelo que se propõe que sejam vistas como estruturas inanalisáveis.

Disponha sempre!

 

 1. Para mais informações, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1015-1018;1037-1041.

 

NEPara uma classificação que é válida no Brasil, mas não em Portugal, consultar as respostas sobre o conceito de «aposto especificativo», indicadas nos Textos Relacionados.

Pergunta:

Na frase «O mundo da arte está cheio de modelos femininos», qual a função sintática de "da arte"?

Muito obrigada.

Resposta:

No caso em apreço, o constituinte «da arte» desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo.

Mundo é um nome autónomo, com identidade semântica independente, o que significa que não pede um argumento que complete o seu sentido. Neste caso, o constituinte «da arte» incide sobre o nome mundo e restringe o seu sentido, associando-lhe um valor de classificação, que, neste caso, descreve um tipo1, denotando um tipo particular de mundo (equivalente a «área»).

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre os sintagmas preposicionais classificadores, cf. Brito e Raposo in Raposo et al.,  Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1067-1070.

Pergunta:

Eu gostaria de tocar mais uma vez num assunto que já foi tratado cá no Ciberdúvidas, porém as respostas ainda não me satisfizeram. No dia 8 de outubro de 2024, quanto à minha pergunta em torno da frase “Bons olhos o vejam” e quanto à sua colocação pronominal enclítica, vós me respondestes o seguinte:

«Quanto à colocação do clítico, a próclise (colocação antes do verbo) ocorre porque a frase é optativa/exclamativa. Quando a frase inclui uma palavra exclamativa ou a própria frase tem uma natureza exclamativa, esses fatores geram próclise.»

De tal resposta se conclui que não seria possível construções como essas: «Vejam-no bons olhos» e «Bons olhos vejam-no».

Entretanto, recentemente, ao tratar do uso do infinitivo pessoal no seu Dicionário de Questões Vernáculas, Napoleão Mendes de Almeida traz a seguinte frase: «Perdoe-te o céu o haveres-me enganado», isso que me fez questionar se há realmente possibilidade de usar a ênclise em orações subjuntivas independentes sem a conjunção que, quando o verbo é o vocábulo que inicia a oração, como a frase : «Perdoe-te o céu o haveres-me enganado.»

O que vós dizeis sobre isso?

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Relativamente à construção exclamativa (1), mantemos o que ficou dito nesta resposta. Trata-se de uma estrutura fixa, com pouca variabilidade, onde se opta pela próclise por se tratar de uma frase optativa.

(1) «Bons olhos o vejam!»

Noutro plano, se considerarmos frases como (2) ou (3), estamos perante outra realidade sintática:

(2) «Vejam-no bons olhos.»

(3) «Abracem-no as boas maneiras.»

Nestes casos, estamos perante construções optativas que não apresentam um constituinte em posição pré-verbal, como acontecia em (1). Nestas situações em que a frase inicia com a forma verbal, o pronome átono surge em posição enclítica1.

Com orações optativas iniciadas por que ou que apresentem um constituinte pré-verbal, o pronome átono surge em próclise:

(4) «Que me escrevas depressa!»

(5) «Deus te acompanhe!»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2272-2273.