Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Após ler em vários suportes sobre o aspeto verbal, continuo com algumas dúvidas:

a) quando, por exemplo, se afirma que o aspeto gramatical imperfetivo «apresenta a situação expressa pelo enunciado como ainda em curso e não concluída», por exemplo «O Ricardo pintava uma aguarela» (Aura Figueira, 24 de outubro de 2017, in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa,  consultado em 03-10-2021), parece haver uma contradição; pois pela afirmação «a situação está e ainda em curso e não concluída», depreende-se que está em curso no momento da enunciação, isto é, quando o enunciador pronuncia a afirmação, o que, embora o contexto não seja totalmente preciso, não estará correto, pois tudo indica que a ação já terá terminado antes da enunciação;

b) o valor imperfetivo pode combinar-se com outros valores, nomeadamente o habitual e o iterativo? Por exemplo, em «Tenho encontrado gente admirável por todo o lado», temos concomitantemente o valor iterativo e imperfetivo? Seria possível esclarecerem-me? Muito obrigado    

Resposta:

A análise de um verbo na frase envolve diferentes planos que interagem entre si.

Assim, se nos situarmos na perspetiva dos valores temporais, sabemos que um verbo flexionado no pretérito imperfeito localiza, por defeito, a situação que descreve num intervalo de tempo anterior ao momento da enunciação.

Quando convocamos a análise aspetual, o objetivo é compreender como é apresentada a estrutura temporal interna da situação que o verbo descreve. É esta perspetiva que nos permite, por exemplo, afirmar que os verbos das frases (1) e (2) têm uma estrutura temporal distinta:

(1) «O João espirrou.»

(2) «O João lê um livro.»

Com efeito, em (1), descreve-se uma situação pontual, que não tem duração interna, enquanto em (2) se descreve uma situação durativa, que tem duração interna. Repare-se que, nesta ótica, não nos estamos a interessar pelo valor temporal, porque não estamos a localizar a situação num dado intervalo de tempo.

Quando convocamos uma análise do aspeto gramatical, estamos a combinar a análise do aspeto lexical com outros elementos da frase, como os tempos verbais, os advérbios, entre outros. Esta perspetiva permite, por exemplo, determinar se uma situação é apresentada como culminada ou não culminada. Este último aspeto é pertinente para a distinção entre o valor imperfetivo e o valor perfetivo. Assim, o valor imperfetivo corresponde àquele em que uma situação é apresentada como não culminada, ou seja, os seus limites temporais não são apresentados. Veja-se a frase (3)

(3) «Os homens pré-históricos deslocavam-se frequentemente.»

A situação descrita na frase (3) é apresentada como não delimitada temporalmente, sendo perspetivada do seu interior. É evidente que um dia a deslocação aí descrita deixou de ter luga...

Pergunta:

Queria compreender se a preposição a é corretamente usado na seguinte frase, e se utilizar de em vez de a não estará melhor:

«Assim que entraram no teatro sentiram o nariz contrair-se devido ao cheiro intenso [a] tintas, madeiras cortadas de fresco, vernizes.»

Muito obrigado.

Resposta:

De uma forma geral, e acordo com Celso Luft, ambas as regências são possíveis1. Para o demonstrar, são apresentados exemplos como:

(1) «Havia no quarto um cheiro a bafio» (Ramalho2)

(2) «Cheiro de couro» (poema de Drummond, NR, 7423).

Não obstante, o autor considera uma situação particular: não se pode usar a preposição a na expressão «cheiro de santidade». Para fundamentar esta situação, apresenta como exemplo:

(3) «justas e sofredoras, que morreram em cheiro de santidade” (Antero de Figueiredo: Fernandes4)

Pode verificar-se, no entanto, uma muito ligeira diferença de sentidos entre o uso de uma ou outra preposição. Assim, se compararmos as expressões (4) e (5), verificamos que a expressão (4) significa «o cheiro que as flores têm/emanam», enquanto a expressão (5) significa «o odor que alguém sentiu e interpretou como sendo de flores»

(4) «cheiro de flores»

(5) «cheiro a flores»

Assim, em certas condições e neste âmbito, a preposição de pode especializar-se no sentido de indicar a origem ou a fonte5.

Não obstante, refira-se também que com nomes deverbais (como é o caso de cheiro, que se forma a partir de cheirar), a nominalização do verbo associa-se frequentemente a uma construção em que o complemento nominal corresponde ao complemento direto do verbo, como acontece em (6)

(6) «a crítica ao livro» = «alguém criticou o livro»

Nestas situações, como afirmam Brito e Raposo, «existem nominalizações ativas com nomes deverbais correspondendo a verbos transitivos nas quais o complemento direto é introduzido não pela preposição canónica...

Pergunta:

À pergunta sobre se se escreve «um dia, encontrei o João», ou «num dia, encontrei o João, responderam em 1998 o seguinte:

«Atendendo à maneira como é formulada a pergunta, a expressão «um dia, encontrei o João» parece a melhor. No entanto, há casos em que a outra forma está mais correcta. Por exemplo: «Num dia de chuva, encontrei o João».' in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, [consultado em 01-10-2021]

Qual o motivo para «de chuva» alterar a construção? Qual a formulação correta?

Obrigado.

Resposta:

Ambas as frases estão corretas, embora possam ter significados distintos.

A preposição em utiliza-se para traduzir o valor de localização temporal com complementos que incluem informação temporal relacionada com dias da semana, estações ou períodos festivos1.

Neste contexto, a frase apresentada em (1) é equivalente a (2):

(1) «Num dia, encontrei o João.»

(2) «Encontrei o João neste intervalo de tempo.»

Já o determinante artigo indefinido um, quando associado a um nome, forma um sintagma indefinido, que é usado para «referir uma entidade particular do universo do discurso (ou um grupo particular de entidades), indicando, no entanto, ao ouvinte que a identificação dessa entidade ou grupo não é importante no contexto discursivo – em certos casos (mas não em todos), porque assume que o ouvinte, de qualquer modo, não tem informação suficiente para fazer essa identificação»2. Neste âmbito, podemos considerar que as frases (3) e (4) são equivalentes:

(3) «Um dia encontrei o João.»

(4) «A dada altura cuja referência explícita não interessa, encontrei o João.»

Todavia, refira-se que, no contexto de localização temporal, ocorrem situações de omissão da preposição em. Esta situação é mais frequente na oralidade, modalidade que tendencialmente busca a simplificação, mas também pode ocorrer na escrita, como se esclarece nesta resposta. Neste quadro, as frases apresentadas podem ser consideradas sinónimas. Não obstante, em âmbito formal, o uso da preposição é aconselhável.

Disponha sempre!

&...

Pergunta:

Tenho uma dúvida sobre o emprego da expressão: «todos os (...)»

Num texto, escrevi a seguinte frase:

«O serviço militar é um dever obrigatório destinado a homens maiores de 18 anos, que pode ser prestado em (...).»

Disseram-me para incluir a expressão «todos os» antes do elemento frásico «homens maiores de 18 anos».

Pois bem, a minha dúvida é precisamente se o emprego da expressão «todos os» é realmente necessário para a correta compreensão da frase...

Creio que ao dizer simplesmente «destinado a homens maiores de 18 anos (...)» já se compreende que diz respeito a «todos os homens», mas não tenho a certeza, e por isso, muito agradecia uma resposta.

Resposta:

Habitualmente, o uso de um sintagma nominal no plural deve associar-se ao determinante artigo definido se se pretender designar a totalidade de entidades que correspondem ao que é referido.

Assim, na frase (1), o locutor dá a entender que viu a globalidade dos filmes produzidos por Almodóvar:

(1) «Eu vi os filmes de Almodóvar.» (= todos os filmes)

Neste contexto, a utilização do quantificador todos revela-se redundante. Como referem Miguel e Raposo na Gramática do Português: «O uso explícito de todos é usualmente evitado por ser redundante e por tornar o enunciado pragmática e estilisticamente “pesado”, a menos que o falante queira enfatizar o aspeto quantitativo»1.

Desta forma, se pretender tornar claro que todos os homens maiores de 18 anos estão abrangidos pela afirmação será preferível a construção:

(2) «O serviço militar é um dever obrigatório destinado aos homens maiores de 18 anos, que pode ser prestado em (...).»

Se a intenção for realçar os aspetos quantitativo da afirmação, associado, por exemplo, à inferência de que ninguém está livre desta obrigação, então justificar-se-á o recurso ao quantificador todos.

Disponha sempre!

 

1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 825.

Pergunta:

Na frase «quem o feio ama, bonito lhe parece», qual o sujeito do verbo parece? Qual a função sintática do pronome lhe? O termo «bonito lhe parece» exerce que função sintática em relação à primeira oração?

Obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada, o pronome lhe desempenha a função sintática de complemento indireto/objeto indireto.

Já a relação entre as duas orações que constituem a frase exige uma análise mais detalhada.

Assim, é comum a apresentação de frases idênticas à que se apresenta em (1):

(1) «Quem tudo quer tudo perde.»

Esta frase caracteriza-se por ter um sujeito oracional que corresponde à oração subordinada substantiva relativa «Quem tudo quer». A oração «tudo perde» é a oração subordinante composta por verbo e complemento direto / objeto direto («tudo»).

No caso da frase apresentada pelo consulente (a qual corresponde a um provérbio de uso comum), embora esta apresente semelhanças com a frase (1), a oração subordinada substantiva relativa não é o sujeito do verbo parece. Na verdade, o sujeito deste verbo está elidido, mas semanticamente é possível identificar que se trata do termo feio:

(2) «O feio parece-lhe bonito.»

Assim sendo, a oração relativa poderá ser interpretada de duas formas, que apresentamos aqui como hipóteses de estudo:

(i) como integrando uma estrutura elíptica, da qual o predicado do qual esta oração é sujeito está omisso (poderí...