Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sobre a regência do verbo desgarrar, encontrei que é transitivo («desviar do rumo»), intransitivo e pronominal («desviar-se do rumo»). No entanto, gostaria de entender se a expressão «desgarrar para longe» encontra respaldo na linguagem formal.

Obrigada.

Resposta:

O verbo desgarrar pode ter vários usos:

i) como verbo intransitivo:

    (1) «O navio desgarrou.» (Dicionário Houaiss)

ii) como verbo transitivo direto:

    (2) «O vendaval desgarrou uma das embarcações.» (Dicionário Houaiss)

iii) como verbo transitivo indireto:

    (3) «O satélite desgarrou da sua órbita.» (Dicionário Houaiss)

iv) como verbo pronominal:

    (4) «Desgarrar-se por caminhos tortuosos.» (Dicionário Houaiss)

Nestes usos, o verbo significa «apartar-se (da sua rota), desviar(-se), afastar(-se)».

No caso em apreço, não temos um contexto que permite aferir o sentido que se associa ao verbo desgarrar. No entanto, à partida, qualquer dos significados apresentados atrás poderá esclarecer a intenção veicul...

Pergunta:

Assim é a primeira estrofe do poema "O Mergulhador", do poeta brasileiro Vinicius de Moraes:

«Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.»

Para além do efeito poético que a prodigalidade dos pronomes oblíquos proporciona, que relações gramaticais poderiam ser identificadas nesse emaranhado deles?

Já me deparei com pronomes oblíquos tônicos sucedidos por átonos, mas sempre atribuí a um pleonasmo são. Em tais casos, porém, não me oriento bem.

Resposta:

No caso em apreço, todos os pronomes pessoais de segunda pessoa desempenham a mesma função sintática: a função de complemento direto.

As formas diferentes que os pronomes apresentam resultam de uma exploração das suas possibilidades de colocação na frase, o que contribui para o aparecimento do pleonasmo e de uma certa musicalidade associada à aliteração1.

Assim, a forme te surge em posição proclítica (antes do verbo). Esta é uma colocação típica da linguagem coloquial na variante brasileira do português. A mesma forma te surge em posição enclítica (depois do verbo), uma colocação típica da variante europeia do português. Por fim, a forma preposicionada «a ti» constitui um caso de redobro do pronome clítico. Trata-se de uma construção de reforço introduzida pela preposição a que desempenha a mesma função do pronome que repete. Por essa razão, o sintagma «a ti» desempenha também a função de complemento indireto.

Disponha sempre!

 

1. Note-se, porém, que, numa perspetiva normativa, o uso do pronome aqui apresentado é redundante, pelo que não se recomenda. 

Páscoa
Origem e significados (novos e velhos)

A professora Carla Marques apresenta uma crónica dedicada ao percurso da palavra Páscoa das suas origens até chegar ao português.

Pergunta:

Peço o favor de me esclarecerem sobre qual é a função sintática desempenhada pela expressão «do ser humano» na frase «Com Maria apareceu também a luz que, [...] apesar de ainda me escaparem enquanto metáforas belíssimas, encobrimentos e contradições do ser humano.»

Muito obrigado.

Resposta:

A frase apresentada foi transcrita de um texto de autoria de Maria Teresa Horta para o manual escolar Mensagens 11 (Texto Editores, p. 30), que aqui transcrevemos na íntegra: 

«Com Maria apareceu também a luz que, num súbito relâmpago, inundou todo o texto de Garrett deixando a descoberto os secretos recantos de sombridade, premonições e fatalidades, que apesar de ainda me escaparem enquanto metáforas belíssimas, encobrimentos e contradições do ser humano, já me pareciam evidentes na qualidade de antevisões de perdas e tragédias.»

Na frase em questão, a expressão «do ser humano» relaciona-se com o nome contradições, desempenhando a função sintática de complemento do nome. Considerando que o nome contradição é deverbal, tendo-se formado a partir de contradizer1, vemos que é possível estabelecer a equivalência de «contradições do ser humano» com a frase apresentada em (1):

(1) «O ser humano contradiz-se.»

Ora, os nomes derivados de verbos recuperam os argumentos do verbo como seu complemento, como acontece na expressão em análise. Estes argumentos, no interior do sintagma nominal, passam a desempenhar a função de complemento do nome.

Disponha sempre!

 

1. Neste caso, a base de derivação é "contradiç-", variante formal do radical de "contradiz-", do verbo contradizer. Trata-se de uma variante relacionada com um fenómeno ocorrido no latim: verbo contrādīc(ō) +‎ &#x...

Pergunta:

Na frase «Nós todos somos seus fãs», qual a função sintática do vocábulo todos na frase mencionada?

Obrigado.

Resposta:

Todos desempenha a função de adjunto adnominal.

Na frase em questão, o pronome indefinido1 todos determina o pronome pessoal nós, sucedendo-o. Repare-se que a frase (1) apresenta uma sintaxe também possível, na qual todos antecede o pronome nós:

(1) «Todos nós somos seus fãs.»

Deste forma, todos integra o sintagma nominal, incidindo sobre o nome com a função de adjunto adnominal.

Note-se, porém, que todos integra o sintagma que, na sua totalidade, desempenha a função sintática de sujeito, pelo que a função de adjunto ocorre ao nível do sintagma nominal e não do da frase, como se observa na análise abaixo:

(2) «[Nós [todos]adjunto adnominal]sujeito somos [[seus]adjunto adnominal fãs]predicativo do sujeito

Disponha sempre!

 

1. Em contexto escolar português, todos será classificado como quantificador universal, de acordo com o Dicionário Terminológico.