Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
<i>Exéquias</i>
A evolução da palavra

A palavra exéquias passou a dominar o espaço público por ocasião da morte da rainha Isabel II, o que deu motivo à crónica da professora Carla Marques no programa Páginas de Português (Antena 2, 18 de setembro de 2022).

Pergunta:

Há alguma diferença entre «convidar para» e «convidar a»? Se sim, quando devemos usar esta expressão e quando devemos usar aquela? Estou particularmente interessado neste caso: «Convidou-me a escrever um livro» ou «Convidou-me para escrever um livro»?

Muito obrigado.

Resposta:

Com efeito, a seleção das preposições para ou a por parte do verbo convidar parece tender para uma especialização de significação. Não estamos, não obstante, perante uma situação estabilizada do ponto de vista dos usos. 

Com as devidas reticências, poderemos observar, em geral, o seguinte:

(i) Quando o verbo significa «solicitar a presença ou participação de (alguém) em algo; chamar, convocar» combina-se preferencialmente com a preposição para:

(1) «Convidei-o para jantar comigo.»

(2) «Convidei-o para a inauguração.»

Neste contexto, todavia, há casos em que o verbo se pode combinar com a preposição a, ativando a mesma significação:

(3) «Convidei-o a jantar comigo.»

(4) «*Convidei-o à inauguração.»

(ii) Quando convidar significa «pedir, requerer, ordenar cortesmente» parece ter preferência pela preposição a:

(5) «convidou-o a organizar equipa.»

(6) «Convidou-o a sair.»

(iii) É também com a preposição a que se combina convidar quando significa «despertar a vontade; atrair, induzir; predispor»:

(7) «O calor convida à tertúlia.»

(8) «O mar convida a banhos calmos.»

No caso da frase apresentada pelo consulente, se o sentido pretendido for o que se apresenta em (ii), o verbo convidar com...

Pergunta:

No verso de Camões «Amor é um fogo que arde sem se ver», seria correto dizer que «sem se ver» seria um adjunto adverbial de modo?

Quer dizer: o modo como se arde é «sem se ver» (ou no caso, com o pronome apassivador se = arde sem ser visto).

Seria «sem se ver» um adjunto adverbial de modo (termo acessório) do predicativo «arde»?

Poderiam me responder por enorme gentileza?

Obrigado.

Resposta:

Com efeito, o constituinte «sem se ver» desempenha a função de adjunto adverbial de modo (modificador do grupo verbal).

O verso de Camões que introduz o conhecido soneto «Amor é um fogo» corresponde a uma frase copulativa na qual Amor desempenha a função de sujeito e o sintagma nominal «um fogo que arde sem se ver», a de predicativo do sujeito. No interior deste sintagma, encontramos uma oração subordinada relativa que toma como antecedente o nome fogo.

Na oração relativa «que arde sem se ver», o pronome que desempenha a função sintática de sujeito e o constituinte «sem se ver» é um adjunto adverbial com valor modal. É possível identificá-lo porque se reporta ao verbo arder e porque responde às perguntas «como?», «de que modo ou maneira?» Não estamos perante um complemento do verbo (relativo ou oblíquo) porque o verbo arder, sendo intransitivo, não exige nenhum constituinte para completar o seu sentido.

Refira-se ainda que o constituinte «sem se ver» é composto por uma preposição, sem, que introduz uma oração reduzida de infinitivo: «ver-se».

Disponha sempre!

Pergunta:

É verdade que existem algumas respostas sobre este assunto. Contudo, a minha dúvida não é contemplada em nenhuma. Pelo menos, eu penso que não e peço desculpa, se estiver enganada.

Estive a ver as exceções ao uso da vírgula entre o sujeito e o predicado e não respondem à minha dúvida.

Gostaria que me esclarecessem se é possível colocar uma vírgula entre estas duas funções sintáticas, no caso de haver uma inversão : " começa cedo, a criaturinha"

A vírgula anterior e possível ou é, de todo, impossível?

Desde já agradeço.

Resposta:

A vírgula em questão é aceitável.

De uma forma geral, não se usa vírgula quando o sujeito se coloca imediatamente após o verbo, como acontece em (1), onde se assinala o sujeito a negrito:

(1) «– Vamos até lá! – respondeu o João

Todavia, se entre o verbo e o sujeito posposto surgirem outros constituintes, a colocação de uma vírgula a isolar o sujeito pode auxiliar na distinção entre constituintes com diferentes funções:

(2) «É professor de Matemática na minha escola, o João

Por esta razão, ainda que não seja obrigatória, a vírgula pode ser usada na frase apresentada:

(3) «Começa cedo(,) a criaturinha.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Felicito-vos pelo retorno às atividades.

Nessa mesma alegria, gostaria de saber qual o valor da seguinte expressão «após o que», em casos como «fulano entregou o carro ao dono, após o que, seguiu seu caminho».

Nesse caso, além do valor da expressão em si, qual seria o valor do pronome que, aí?

Resposta:

Trata-se de uma expressão com valor temporal, que desempenha a função de localizar a situação descrita num intervalo de tempo posterior ao da situação descrita na oração anterior, sendo equivalente a depois. Assim, a ordem temporal das situações será a seguinte: 1.º «Entregou o carro ao dono»; 2.º «Seguiu o seu caminho».

Na construção «após o que» identificamos a preposição após que introduz uma oração relativa iniciada pela locução relativa «o que»1, composta pelo artigo definido o, seguido do pronome relativo que. Refira-se, todavia, que esta proposta não é consensual entre os gramáticos, existindo quem, numa linha mais tradicional, prefira classificar o como pronome indefinido, seguido de pronome relativo2.

A locução «o que» tem a capacidade de retomar todo o antecedente de natureza oracional. Deste modo, a frase apresentada pelo consulente pode ser parafraseada pela que se apresenta em (1):

(1) «Fulano entregou o carro ao dono e, após esta situação, seguiu seu caminho.»

Uma nota final para referir que a segunda vírgula presente na frase apresentada pelo consulente pode ser eliminada, uma vez que separa expressão em análise da oração que encabeça:

(2) «Fulano entregou o carro ao dono, após o que seguiu seu caminho.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Veloso in Paiva Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2085 – 2089.

2. Cf., por exemplo, Cunha e Cintra,