Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O adjetivo esbulhado pode selecionar a preposição com, reger a preposição com?

«Sentiu-se esbulhado com o que houve.»

E nesta frase:

«O Imperador viu-se esbulhado de reinar com este ato.»

Nesse caso, a preposição com refere-se a que constituinte frasal? Não será igualmente regida por esbulhado como se dá à preposição de?

Muito obrigado ao vosso excelente trabalho!

Resposta:

O adjetivo esbulhado forma-se a partir do verbo esbulhar, pelo que recupera a sintaxe deste verbo.

Esbulhar pode construir-se como verbo transitivo direto e indireto: «esbulhar alguma coisa a alguém», usado com o sentido de «tirar a posse de algum a coisa; privar; espoliar (i. é, privar por fraude ou violência)»1, como em (1):

(1) «Ele esbulhou os proprietários dos seus terrenos.»

Com o sentido de “roubar”, também pode ser usado como verbo transitivo direto (e indireto), como em (2) e (3):

(2) «Ele esbulhou os familiares.»

(3) «Ele esbulhou os terrenos aos proprietários.»

Estas construções permitem usos como:

(4) «Os proprietários viram-se esbulhados dos seus terrenos (por ele).»

(5) «Os familiares sentiram-se esbulhados (por ele).»

Por esta razão, qualquer das frases apresentadas pelo consulente pode ser considerada correta. Percebe-se ainda que o adjetivo esbulhado não rege nas frases apresentadas a preposição com. Na frase transcrita em (6), esbulhado rege a preposição de:

(6) «O Imperador viu-se esbulhado de reinar com este ato.»

O constituinte «com este ato» não está dependente do adjetivo esbulhado, pois relaciona-se antes com o verbo ver. A comprová-lo está a possibilidade de o constituinte pode ser colocado em início de frase, o que não é possível com o complemento de adjetivo («de reinar», neste caso):

(7) «Com este ato, o Imperador viu-se esbulhado de reinar.»

(8) «*De reinar, o Imperador viu-se esbulhado com este ato.»

Pergunta:

Por motivos familiares, convivo frequentemente com brasileiros, todos eles com cursos superiores. Uma das frases que pronunciam repetidamente e que me choca bastante é «deixa eu ver», «deixa eu fazer».

Já tentei explicar que a frase está mal construída. Inutilmente. É de tal forma que até eu já tenho dúvidas!

Estas construções estão efetivamente erradas?

Agradeço os vossos sempre úteis esclarecimentos

Resposta:

Nestas construções, a forma preferível do pronome será a acusativa (me).

A frase em questão é uma forma abreviada que é equivalente, na forma desenvolvida, à frase (1):

(1) «Deixa que eu faça isto.»

Se analisarmos a frase, identificamos uma oração subordinante («Deixa») acompanhada de uma oração subordinada completiva («que eu faça isto»). Nesta segunda oração, está presente o pronome pessoal eu, que desempenha a função de sujeito da forma faça. O pronome assume a forma nominativa (eu) por ser esta a forma típica desta função.

Esta oração subordinada pode ser convertida numa oração reduzida de infinitivo, na qual a forma faça se converte em fazer:

(2) «Deixa-me fazer.»

De acordo com a interpretação de Bechara, em Lições de Português pela Análise Sintática, me desempenha nestas frases a função de sujeito, sendo, segundo o gramático, o único caso em que um pronome oblíquo funciona como sujeito2. O autor apresenta como exemplo a seguinte frase:

(3) «Sabina fêz-me sentar ao pé da filha do Damasceno […]» (Machado de Assis, Mem...

Pergunta:

Recentemente, deparei-me com a seguinte dúvida: «daquele» ou «naquele lado»?

Por exemplo, escreve-se «A mesa fica bem daquele lado da cozinha» ou «A mesa fica bem naquele lado da cozinha»?

A minha intuição diz-me que naquele (em + aquele) seria o mais correto, mas gostava de saber a vossa opinião.

Muito obrigado e continuem com o excelente trabalho do Ciberdúvidas!

Resposta:

O verbo ficar na construção em questão deve ser construído com a preposição em.

Na frase apresentada em (1), o verbo ficar está usado como verbo copulativo com sentido locativo:

(1) «A mesa fica bem naquele lado da cozinha.

Como verbo locativo, ficar contribui para localizar no espaço a entidade referida no sujeito. Neste contexto, a preposição em permite introduzir o constituinte predicativo que tem a função de proceder à localização do sujeito1.

Disponha sempre!

1. Cf, por exemplo, Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal. Ed. Ática.

Pergunta:

Na frase «A linguagem é o recurso último e indispensável do homem», se o adjetivo destacado for deslocado para antes do substantivo recurso («último» recurso), haverá alteração de sentido frasal?

Há diferença semântica entre «último recurso» e «recurso último»? Se sim, qual?

Muito obrigado!

Resposta:

As duas posições do adjetivo são possíveis.

No caso particular de último, estamos perante um adjetivo que se inclui no grupo dos adjetivos com valor de posicionamento. Este adjetivo em particular tem tendência a ocupar a posição pré-nominal:

(1) «o último aluno»

(2) «o último nome»

(3) «o último livro»

Nesta posição, o adjetivo exprime a ordem, aponta uma entidade sobrante, uma entidade que põe termo a uma sequência ou uma ordenação temporal.  

Em muitos casos, a posposição deste adjetivo ao nome causa estranheza ou rejeição por parte dos falantes:

(4) «*o aluno último»

(5) «?o nome último

(6) «?o livro último»

Não obstante, uma pesquisa no Corpus do Português mostra que o adjetivo último pode combinar-se com alguns nomes ocupando a posição pós-nominal. Esta situação parece acontecer preferencialmente com alguns nomes como objetivo, fim ou com o nome de meses do ano:

(7) «o objetivo último»

(8) «o fim último»

(9) «em outubro último»

Também com o nome recurso parece existir a possibilidade de anteposição ou de posposição do adjetivo último. A diferença semântica que esta alteração dos termos poderá trazer estará muito associada à intenção do falante, pelo que se trata de uma temática que exigiria uma investigação mais fina que aqui não temos oportunidade de desenvolver.

Não obstante, poderemos colocar a hipótese de que a colocação de ...

Pergunta:

Gostaria de saber a regência verbal de logar(-se): "logar(-se) em" ou "logar(-se) a"?

Resposta:

 Não existe ainda uma regra normativa que descreva os usos aconselháveis com o verbo logar-se.

Este é um neologismo, que entrou na língua para o campo da informática. Trata-se de um verbo que tem como sentido «ligar-se a», «aceder a um computador / rede».

Como é frequente entre os neologismos, o verbo logar-se tem ainda um comportamento instável resultante dos usos hesitantes que os falantes vão fazendo dele. Por estas razões também, não existe ainda uma descrição gramatical relacionada com o sistema de regências do verbo.

Se efetuarmos uma pequena pesquisa com o motor de busca Google, verificamos que os falantes adotam tanto a preposição em como a preposição a nas construções. Não obstante, pelo menos entre os falantes da variante brasileira, parece registar-se uma tendência para a seleção da preposição em:

(1) «Comece por logar-se na conta…»

Neste momento, apenas poderemos registar esta tendência e aguardar a estabilização dos usos. Todavia, se pensarmos que a preposição a pode ter um valor associado à transferência de um lugar para outro e a preposição em tem um valor de localização espacial estática1, talvez fizesse mais sentido a opção pela preposição a, uma vez que a ação de logar-se tem implicada esta ideia de movimento / alvo ou meta.

Disponha sempre!

 

1. Cf., por exemplo, Raposo e Xavier in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação C...