Ana Martins - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ana Martins
Ana Martins
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e licenciada em Línguas Modernas – Estudos Anglo-Americanos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestra e doutora em Linguística Portuguesa, desenvolveu projeto de pós-doutoramento em aquisição de L2 dedicado ao estudo de processos de retextualização para fins de produção de materiais de ensino em PL2 – tais como  A Textualização da Viagem: Relato vs. Enunciação, Uma Abordagem Enunciativa (2010), Gramática Aplicada - Língua Portuguesa – 3.º Ciclo do Ensino Básico (2011) e de versões adaptadas de clássicos da literatura portuguesa para aprendentes de Português-Língua Estrangeira.Também é autora de adaptações de obras literárias portuguesas para estrangeiros: Amor de Perdição, PeregrinaçãoA Cidade e as Serras. É ainda autora da coleção Contos com Nível, um conjunto de volumes de contos originais, cada um destinado a um nível de proficiência. Consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e responsável da Ciberescola da Língua Portuguesa

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradecia que me elucidassem acerca deste tema: «comunicação e interacção discursivas.»

Resposta:

O termo comunicação é objecto de diferentes definições, em função de diferentes disciplinas.

As sequências «comunicação e interacção discursivas» e «interacção comunicativa» correspondem a formulações-chave em pragmática linguística.

A interacção comunicativa é todo o tipo de acção verbal conjunta, conflituosa ou cooperativa, convocando dois ou mais agentes (interactantes); é todo o processo verbal onde tem lugar um jogo de influências mútuas, geridas pelos pares de intervenção acção-reacção.

Cf. Tipologias de interacções comunicativas (conversa, entrevista, reunião de trabalho, etc.) em KERBRAT-ORECCHIONI, C., 1990: Les interactions verbales t. I e II, Paris, A. Colin.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o valor aspectual veiculado pela forma verbal na frase: «Milhões de euros mudaram de mãos em poucos dias.»

Desde já obrigada pela vossa atenção.

Resposta:

1. O aspecto é, em português, como noutras línguas românicas, uma categoria nocionalmente heterogénea. O modo como o processo é concebido quanto ao seu desenvolvimento diz respeito a valores de dimensões variadas. A acção é tida em conta quanto à sua duração, quanto à sua quantificação, aos seus limites, ao seu resultado, fase ou grau de desenvolvimento, bem como quanto à sua relação com outras acções, e à orientação de desenvolvimento face a um ponto determinado. Além disso, os modos de expressão do aspecto não estão acantonados a um só nível linguístico: são convocados, para a realização do aspecto, a flexão (ainda que mesmo aqui o aspecto esteja irregularmente distribuído na sua partilha com a categoria de tempo), verbos auxiliares e verbos suporte, assim como o léxico (e fenómenos derivacionais).

Acresce ainda que, ao atendermos, como devemos atender, à composicionalidade da predicação, vemos envolvidos também os adverbiais, as formas que participam dos mecanismos de determinação, com reflexos na fixação do tipo de objecto subcategorizado pelo verbo (denso, massivo, contável).

2. Na frase em apreço, temos uma situação perfectiva1 (aspecto gramatical, atendendo ao morfema de pretérito perfeito), télica e semelfactiva2 (aspecto lexical).

1 Ver Dicionário Terminológico.

2 O valor semelfactivo, relativo a uma só ocorrência, opõe-se aos valores iterativo, frequentativo, habitual e gnómico.

Pergunta:

Em expressões do tipo «O pessoal grisou-se todo à minha pala» e «Ela passou-se dos carretos de vez, e ele ascent(r)ou-se», os verbos grisar-se e ascentrar-se (não sei se este último leva erre), ainda que em gíria, querem mesmo dizer «divertir-se» e «acalmar-se», respectivamente?... São formas verbais que oiço bastante (e que sempre utilizei em família) mas que tenho dificuldade em encontrar atestadas em dicionários ou, pelo menos, com o significado que lhes conheço...

Obrigado!

Resposta:

Grisar significa, na variante do português do Brasil, «tornar grisalho».

Ascentrar não consta dos dicionários consultados (Porto Editora 2006, Houaiss) nem do Portal da Língua Portuguesa.

O consulente pode propor o neologismo ao Observatório de Neologia do Português.

Pergunta:

Quais as classes gramaticais que a palavra tal pode assumir? E em «Que tal um brinde?», qual a classe gramatical do tal?

Obrigada.

Resposta:

1. Segundo o Portal da Língua Portuguesa, tal pode ser adjectivo, advérbio, determinante, pronome indefinido, pronome demonstrativo e nome.

2. Na frase «Que tal um brinde?», a sequência «que tal» corresponde a uma colocação relativamente fixa que realiza um acto directivo não impositivo de convite. Portanto, tal não tem os valores semânticos adstritos a adjectivo, advérbio, determinante, pronome ou nome, mas cumpre uma função pragmática.

Veja casos semelhantes em «Textos relacionados».

Pergunta:

Desde que comecei a usar o computador e a Internet, tem sido sempre evidente para mim que dependemos muito dos termos ingleses para nos entendermos no mundo da informática.

No entanto, essa dependência, não só em relação à informática, das palavras inglesas parece ser maior para os portugueses do que para os brasileiros. Dá-me ideia de que o brasileiro é muito mais rápido a arranjar vocabulário para tapar essas lacunas da língua portuguesa em relação às inovações tecnológicas.

Recentemente apercebi-me de que existia uma tradução para o termo inglês «Internet leak» — a fuga de informação confidencial na Internet ou o "espalhamento" antecipado e muitas vezes ilegal de uma música ou filme pela Internet antes da data de lançamento. Quando tal acontece, os brasileiros dizem simplesmente que determinada música «vazou na Net», ou «vazou na rede», ou «caiu na rede».

Podemos nós fazer a mesma tradução para o português europeu, ou já existe um termo próprio?

Resposta:

1. «Nós», quem? Em Portugal não há uma autoridade, com efectivo poder legal, de, periodicamente e a um ritmo acelerado, prescrever correspondências lexicais ou adaptações gráficas e morfológicas de anglicismos técnicos.

2. Não posso confirmar cabalmente se o Brasil tende a fazer mais adaptações. Verifico, todavia, casos de adaptações desreguladas, como, por exemplo, a opção por "apdeites" (adaptação gráfica/fónica de "update"), na versão português do Brasil do Youtube: actualizações seria uma muito melhor opção...

3. Há pelo menos duas razões pelas quais as adaptações de anglicismos técnicos não se fazem na comunidade de falantes de português europeu: 

— comodismo;
— pragmatismo.
 

Numas vezes, estas razões são cumulativas; noutras vezes, não o são. Por exemplo, a forma podcast é cómoda e pragmática: podcast não corresponde nem a «pós-difusão», nem a «em diferido»1.

4. No caso de «Internet leak» a tradução é apenas uma questão de opção, de acordo com argumentos potenciais de vária ordem: 

— «espalhamento na Internet»;
— «fugas na Internet»;
— «vazamento na Internet»;
— outras.
 

O sentido estrito de leak é: «acção daquilo (líquido ou gás) que se escapa de um buraco ou fresta de um recipiente» (tradução livre do