Começa António M. Feijó por afirmar no primeiro ensaio deste volume que, em relação a uma literatura nacional e à avaliação das suas obras, um cânone corresponde ao «elenco de nomes de autores dignos de se ler» (p. 11). É uma definição sucinta que a presente publicação da Fundação Cupertino de Miranda e das Edições Tinta da China, fazendo eco de O Cânone Ocidental (1994) de Harold Bloom, ilustra com 64 ensaios, maioritariamente dedicados a autores que os editores e ensaístas participantes1 têm como os mais importantes da literatura portuguesa. A expressão definida do título – O Cânone – promete instaurar uma situação de arrogante unicidade referencial que o arranjo gráfico da capa, iconicamente evocativo de pirâmides hierárquicas, acaba por desmentir com ironia.
No seu interior, este livro constitui uma seleção de autores (uns já esperados e outros nem sempre óbvios) associada a temas literários cuja abordagem se pauta por uma deliberada heterogeneidade de perspetivas que justificam o posto dos eleitos nos lugares cimeiros. O Cânone inclui, assim, os nomes de Agustina Bessa‑Luís, Alexandre Herculano, Alexandre O’Neill, Almada Negreiros, Almeida Garrett, Antero de Quental, António José da Silva, António Nobre, António Vieira, Aquilino Ribeiro, Bernardim Ribeiro, Bocage, Camilo Castelo Branco, Camilo Pessanha, Carlos de Oliveira, Cesário Verde, Dom Duarte, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, Fiama Hasse Pais Brandão, Florbela Espanca, Frei Luís de Sousa, Gil Vicente, Gomes Leal, Herberto Helder, Irene Lisboa, João de Deus, Jorge de Sena, José Régio, José Rodrigues Miguéis, José Saramago, Júlio Dinis, Luís de Camões, Luiza Neto Jorge, Maria Judite de Carvalho, Mário Cesariny, Mário de Sá-Carneiro, Miguel Torga, Raul Brandão, Ruben A., Ruy Belo, Ruy Cinatti, Sá de Miranda, Teixeira de Pascoais, "As Três Marias" (ou seja, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, autoras da Novas Cartas Portuguesas) e Vitorino Nemésio. Contam-se ainda um artigo sobre as revistas Orpheu e presença, bem como outros a respeito de problemáticas associadas ao conceito de cânone (por exemplo, a homossexualidade e do feminismo), do questionamento de géneros literários e de aspetos da história e sociologia da vida literária em Portugal.
Como os próprios editores sublinham na contracapa e na introdução da obra, «um cânone é uma lista e uma escolha», e, portanto, os ensaios apresentados «não representam nenhum consenso», constituindo «um livro de crítica literária para nos fazer pensar sobre a literatura portuguesa». Sendo assim, longe de oferecer ao leitor despreocupado, uma amena visita guiada pelo legado literário português, da Idade Média à contemporaneidade, o livro dirige-se a um público especializado, sem deixar de ser convidativo para não especialistas. Não fugindo à polémica e ao debate, a intenção de chocar visões concorrentes ou talvez mais instaladas suscita reações desfavoráveis (ler aqui) quando se excluem nomes como Sophia de Mello Breyner ou José Cardoso Pires.
A publicação de O Cânone foi assinalada por duas sessões de lançamento com a presença dos editores e registadas em vídeo: no Jardim Botânico Tropical de Lisboa, em 14 de Outubro de 2020, com apresentação de Ricardo Araújo Pereira; na Casa de São Roque, no Porto, em 15 outubro de 2020, com apresentação de Pedro Sobrado (que, assinalando o «caráter incendiário» do livro, deixa o aviso: «corremos o risco de ninguém se rever no cânone – neste cânone»).
Sobre a receção de O Cânone, leia-se, por exemplo, a extensa entrevista que António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen concederam ao jornalista Luís Miguel Queirós, para o Ípsilon, suplemento do jornal Público, em 20/11/2020. Ler também a "Notado editor" que, a propósito de O Cânone, escreveu Francisco José Viegas, na revista Ler (n.º 157, primavera/outono de 2020, p. 2) e do qual se citam estas linhas: «Livros como este [...] são sempre polémicos, injustos, equívocos, imperdoáveis,controversos, questionáveis, elogiáveis, demasiado afirmativos -- ou corajosos até um ponto que pode aproximar-se da tentativa de suicídio em público. O ponto mais polémico nunca é o da inclusão de autores -- mas o da exclusão.»
1 Além dos organizadores da obra, são ensaístas: Abel Barros Baptista, Anna Klobucka, Cláudia Pazos Alonso,Fernando Cabral Martins, Gustavo Rubim, Hélio J. S. Alves, Isabel Almeida, Isabel Cristina Rodrigues, Joana Matos Frias, Joana Meirim, José Carlos Seabra Pereira, João Dionísio, João Pedro George, Maria Sequeira Mendes, Nuno Amado, Pedro Madeira, Pedro Mexia, Peter Stilwell, Pierre de Roo, Rita Patrício, Rosa Maria Martelo, Rui Ramos e Viktor Mendes.
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