Com publicação deste livro pelas Edições Colibri em dezembro de 2021, o autor, o médico-veterinário José Caldeira Martins, propõe «recolher o que ainda pode ser arrecadado do património abastado, genuíno e variado do que foi uma pequena comunidade rural ao cimo do Alentejo».
A expressão «ao cimo do Alentejo» quer dizer que geograficamente «Alpalhão, povoação tão antiga que há quem diga que possa ter sido a Fraxinium dos romanos, fica no Alentejo, a nordeste, no concelho de Nisa» (na contracapa). Dialetalmente, indica também que o falar que motiva a recolha se encontra numa área dialetal peculiar no conjunto dos dialetos centro-meridionais portugueses, por nele ocorrerem alterações de timbre no sistema vocálico acentuado, que lembram sons típicos do francês (cf. Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 102). Várias têm sido as propostas de explicação desta singularidade, que encontra parcialmente paralelo na zona sudoeste do Algarve, podendo tudo dever-se ao povoamento medieval da região, com colonos vindos de regiões europeias a norte dos Pirenéus, ou mais simplesmente à mudança interna do sistema vocálico.
O livro desenvolve-se em três partes: "Palavras" (pp. 19-221), um reportório lexical, onde têm entrada termos mais ou menos pitorescos como "amêxoa" («bofetada»), "enfalagueirado" («muito magro; com falta de vivacidade»), «à maré de» («por volta de») ou "ter xerpa" («ter alento; estar em boa condição física) ; "Expressões" (223-301), um inventário de expressões e frasologias do falar alpalhoeiro (gentílico desta vila) – por exemplo, «bem me haja a mim» («não me arrependo do que fiz»), «dar lida» («isso não me dá lida», no sentido de «isso não me preocupa» ou «nanlé, ôoui» (interjeição usado com sentido de espanto, admiração ou de protesto suave); e "Apontamentos diversos" (303-316), breve secção onde se recolhem provérbios e sentenças – «as borras estão no fundo do pote» («o pior está para vir») –, bem como jogos de palavras, como sejam lengalengas ou fórmulas encantatórias, como a conhecida «Joaninha voa, voa, que o teu pai está em Lisboa», numa versão registada também conforme a pronúncia local: "Joaninh'avoá voa, c'ô tê pai tá im Lisboa a cmou uma casca d'ôv" («Joaninha, avoa, avoa, que o tu pai está em Lisboa, a comer uma casca de ovo»).
Todas as entradas se apresentam no português padrão, embora incluindo regionalismos de vários tipos, seguidas de uma transcrição que visa representar a prolação típica dos falantes de Alpalhão. A opção é uma pronúncia figurada, com a finalidade de dar uma ideia aproximada das vogais do falar em apreço, sem pretensões académicas: «[Este trabalho] não foi feito para ser dissecado por filólogos. Os sons reproduzo-os tal como a mim me soam, sem recorrer aos símbolos consagrados da Fonética, que eu não domino nem seriam decifráveis pelas pessoas a quem esta recolha é dirigida.»
É assim que o traço talvez mais desconcertante para quem fale o padrão de Portugal, o da palatalização do e fechado, se representa com ou, para figurar um som próximo do eu de peu («pouco») em francês. Por exemplo, na expressão de enfado «vai chamar pai a quem te fez as orelhas», no sentido de «não me aborreças», surge como «vai chamá pai a cãi t fous a oroulhas». Nesta sequência regista-se igualmente a queda de r no final de palavra (chamar > "chamá"), fenómeno também conhecido na oralidade do português europeu e muito difundido nos dialetos brasileiros.
Outro aspeto também da originalidade fonológica deste dialeto é a pronúncia do ditongo final ão como ã, fenómeno que justifica citar a breve história contada pelo autor sobre o próprio nome da vila:
«Não há alpalhoeiro que, lá foram ao exclamar a sua naturalidade, não tenha recebido por troco:
– Alpalhã-ó!
E lá vem a explicação: só aquando da afixação, na entrada da vila, da placa que identificava a localidade, já tinha entrado o século XX, é que os meus conterrâneos se terão apercebido de que o nome da terra não era Alpalhã, mas Alpalhão.
"– Nanlé! Agora já nã sames Alpalhã, sames Alpalhã-ó."»
Elaborado por um não especialista, Alpalhão é exemplo meritório do que se pode fazer em muitas vilas e aldeias em matéria de valorização do património, apesar do despovoamento e, portanto, do risco de descontinuidade cultural. Descendentes de antigos alpalhoenses (ou alpalhoeiros) de gema, eventuais novos habitantes e o público em geral, todos ganham certamente com a consulta desta obra não só pelo que tem de inconfundivelmente local e diverso, mas também pelas afinidades que possa revelar com regiões diferentes, dentro do território de Portugal e até fora, em Espanha e mais além, já que Alpalhão é vila não longe da raia.
Este é um espaço de esclarecimento, informação, debate e promoção da língua portuguesa, numa perspetiva de afirmação dos valores culturais dos oito países de língua oficial portuguesa, fundado em 1997. Na diversidade de todos, o mesmo mar por onde navegamos e nos reconhecemos.
Se pretende receber notificações de cada vez que um conteúdo do Ciberdúvidas é atualizado, subscreva as notificações clicando no botão Subscrever notificações