Em Portugal, o historiador da língua Fernando Venâncio tem com certeza abalado crenças, quando, em Assim Nasceu Uma Língua (2019), considera que «esta língua, que tão naturalmente chamamos nossa, não iria precisar de um Portugal para existir» (p.68), sustentando que os primeiros ensaios da sua transposição escrita a revelam já «gramaticalmente consolidada, coerente, funcionando em pleno» (p. 66). As dúvidas a este respeito ficam com certeza dissipadas com a descrição que o filólogo sueco Pär Larson (Istituto Opera del Vocabolario Italiano, Florença) oferece em A Língua das Cantigas, um lançamento de finais de 2019 pela Editorial Galaxia, de Vigo.
Trata-se de uma gramática do chamado galego-português, tal como se atesta literariamente no corpus de cantigas profanas e religiosas (incluindo, portanto, as extraordinárias Cantigas de Santa Maria de Afonso X) que foram compostas sobretudo na Galiza e em Portugal, entre os finais do século XII e as primeiras décadas do século XIV. Publicado originalmente em italiano, a tradução para galego é da filóloga Mariña Arbor Aldea (Univ. Santiago de Compostela), que a levou a cabo com a principal finalidade de realçar o valor patrimonial da produção trovadoresca para a Galiza atual. É, não obstante, uma edição que interessa a um público mais amplo, dado abordar a matriz linguística e literária ainda hoje compartilhada por galegos e pelos muitos milhões de falantes de português.
A obra compreende um capítulo contextualizador (Marco histórico) seguido de onze secções descritivas distribuídas por três partes. Na primeira, aborda-se a escrita, assinalando-se a dualidade entre «escrita alfonsi» (ou escrita "afonsina") e «escrita dionisina», a sublinhar uma diversidade que conduzirá à diferenciação entre o galego e o português (pp. 45-50). A segunda parte centra-se na fonologia (vocalismo, consonantismo e fenómenos gerais – pp. 43-60); e uma terceira parte, mais extensa, compreende sete secções distribuídas por sete classes morfossintáticas (nome, abrangendo adjetivos e pronomes; numerais; verbo; advérbio; preposições; conjunções; interjeições – pp. 61-162). Completam o volume um prefácio (limiar) do linguista galego Henrique Monteagudo (pp. 9-11), uma lista de abreviaturas e convenções, uma introdução do autor, uma nota da tradutora, um apêndice com quatro textos comentados, uma bibliografia breve (e criteriosa) e um muito útil índice das formas comentadas.
Com uma dedicatória a dois incansáveis estudiosos da expressão literária galego-portuguesa – Giulia Lanciani (1935-2018) e Giusepe Tavani (1924-2019) –, Pär Larson concretiza assim a intenção de pôr ao alcance dos alunos universitários de filologia românica não uma gramática histórica, mas, sim, uma breve gramática descritiva facilitadora da leitura e da compreensão da lírica medieval da Galiza e de Portugal. O propósito não será totalmente novo, se se considerarem, por exemplo, as páginas que à língua das cantigas galego-portuguesas dedicou Maria Ana Ramos em A Lírica Galego-Portuguesa (Lisboa, Editorial Comunicação, 1983, pp. 81-118). Mas o formato e a qualidade da síntese tornam imprescindível o livro do investigador sueco para um conhecimento frutuoso desse património brilhante e, sem dúvida, galego da língua portuguesa.
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