A língua portuguesa, como as outras, está sujeita a mudanças contínuas, sobretudo no que se refere ao léxico, com a entrada de novas palavras, com o renascer de algumas que estavam adormecidas, com a atribuição de novos sentidos a muitas outras. Áreas como, por exemplo, a sintaxe estão igualmente sujeitas a transformações que, todavia, são muito mais lentas do que as que se verificam com o léxico. Um dos aspectos em que se regista alguma instabilidade é o que se relaciona com a utilização de preposições com verbos, ou mesmo com nomes e adjectivos. Podemos, por exemplo, combinar alguma coisa com alguém ou estar desejosos de algo.
Um dos verbos cuja estrutura sintáctica deixou, rápida e insistentemente, de ser respeitada é o verbo abusar. Este verbo utiliza-se sobretudo com a preposição de (abusar de), significando «usar em excesso, de forma inconveniente ou prejudicial» cito o Dicionário da Academia, de onde retiro também alguns exemplos: «Abusou da fraqueza do amigo»; «Eu não queria abusar da situação». Pode ainda ser seguido da preposição com ou sem preposição. Neste último caso não tem qualquer complemento, como pode verificar-se no exemplo «Já estás a abusar!»
Abusar não é um verbo transitivo directo, ou seja, não tem complemento directo, característica que é indispensável para que se possa, partindo de uma dada frase, construir outra equivalente, mas na voz passiva, como se exemplifica a seguir com as frases (1) e (2):
(1) «O João viu o jogo.» - Voz activa
(2) «O jogo foi visto pelo João.» - Voz passiva
Uma frase típica na voz passiva tem como sujeito, não a entidade que pratica a acção, mas sim a entidade sobre a qual essa acção recai.
A frase «Fulano abusou de Sicrano» significa que Fulano praticou uma acção prejudicial para Sicrano, o que, no contexto da pedofilia, implica que Fulano violentou sexualmente Sicrano. O facto de o verbo abusar se conjugar com uma preposição, quase sempre de, como já se referiu, não permite transformar «Fulano abusou de Sicrano» numa frase passiva. Também o não permite quando não tem preposição, por inexistência de complemento que pudesse ser deslocado para a posição de sujeito. Não se pode, pois, dizer que Sicrano foi abusado. Até porque, ao dizer isto, se está a ofender Sicrano. É que, na verdade, o adjectivo abusado existe, mas significa exactamente o mesmo que «abusador», logo, «inconveniente», «mal comportado». Quando, na comunicação social ou em qualquer outro lugar, alguém diz que um aluno da Casa Pia foi abusado o que está, na realidade, a dizer é que, em algum momento, esse aluno foi malcriado, inconveniente, abusador. Ora não me parece que os alunos da Casa Pia vítimas do triste caso que nos entra diariamente em casa mereçam, ainda por cima, ser insultados. E a língua portuguesa também não.
Se se quer realçar a posição passiva das vítimas, então use-se um verbo transitivo, que tenha complemento directo. E eles não faltam: violentar (foi violentado); violar (foi violado); maltratar (foi maltratado), etc., etc., etc.