«Mais que projecto ou questão cultural, a Lusofonia é, obviamente, um projecto ou uma questão linguística e, embora talvez menos obviamente, também e até sobretudo um projecto ou uma questão de estratégia geopolítica.»
1. Pressuposto heterodoxo da afirmação de que «a Lusofonia não é prioritariamente um projecto ou uma questão cultural» é a contestação da «certeza», da «evidência» e do «axioma» (tudo entre aspas) de que «a Língua é a expressão da Cultura de um Povo!... E uma primeira consequência da contestação de tal «evidência» foi, para mim, a não aceitação daquilo que, há uns anos atrás, para todos, constituía um «dado adquirido» (e que ainda hoje, por vezes, se ouve, mas penso que já só por inércia!), a saber, a existência de «literaturas africanas de expressão portuguesa, que eu fui paulatinamente ajudando a substituir por «literaturas africanas de língua portuguesa».
Ou seja, a língua, de mera «expressão cultural de um povo» (no caso, o povo português), que inegavelmente também é, começou a ser vista também como o possível instrumento de comunicação de vários povos e de várias culturas e literaturas, etc. e utilizável para a obtenção dos mais variados objectivos, como, por exemplo: a unificação de um País, a construção de um Estado, a afirmação de um Espaço (na circunstância, o «Espaço Lusófono»), etc. E quem, hoje, ousaria falar, por exemplo, de «Países Africanos de Cultura Portuguesa», em vez de «Países Africanos de Língua Portuguesa»?
2. Como «questão linguística», a Lusofonia tem de ser encarada, antes de mais, como a justa avaliação e a consequente valorização da Língua Portuguesa no mundo contemporâneo. Foi, aliás, neste sentido que, na minha recente Carta Aberta ao Presidente Lula, me permiti chamar a atenção para o facto de o Espaço Lusófono utilizar uma mesma língua, «a qual, muito mais que a “Última flor do Lácio, inculta e bela”, segundo os famosos versos de Olavo Bilac, é hoje, objectivamente e segundo a não menos famosa profecia de Fernando Pessoa, “uma das poucas línguas universais do século XXI” (enquanto língua falada em todos os Continentes e com um grande País, o Brasil, seu falante), podendo tornar-se um instrumento inigualável de comunicação e de desenvolvimento entre os homens».
A propósito do que designei «justa avaliação e consequente valorização da Língua Portuguesa no mundo contemporâneo», tal avaliação e valorização devem começar nos próprios lusófonos, Cidadãos e Estados, superando complexos de inferioridade não realistas e identificando os verdadeiros problemas e tarefas da Língua Portuguesa. Darei, a granel e sem nenhuma ordem hierárquica ou qualquer outra, alguns exemplos, principiando com o exemplo da Universidade Lusófona.
De início, eu mesmo alertava recorrentemente, para evitar mal-entendidos desvirtuadores: «A Universidade Lusófona não é uma Universidade da Língua Portuguesa, mas sim uma Universidade de Língua Portuguesa..., porque se encontra num Espaço onde se fala o Português e não o Chinês, o Russo, o Catalão, etc.» Progressivamente, sem cair no patrioteirismo que até na célebre frase de Fernando Pessoa «A minha Pátria é a Língua Portuguesa» se pode infiltrar, fui adquirindo uma dimensão, diria, «mais patriótica», e a Universidade Lusófona, sem deixar de ser, essencialmente, uma Universidade de Língua Portuguesa, não teve pejo em tornar-se também, no contexto de uma séria “Crítica da Razão Lusófona”, uma Universidade da Língua Portuguesa, e isto sem cair em nenhuma espécie de vetero ou neocolonialismo ou de vetero ou neoprovincianismo.
E não se trata de ceder à tentação fácil de afirmar que um dos aspectos da senilmente caracterizada «geração rasca» (não era Horácio que chamava, ao contrário, à sua maneira e no seu latim refinado, “rascas” aos eternos «audatores temporis acti»..., aos eternos «louvadores do antigamente do seu tempo»?) é que... já não sabe falar e escrever correctamente o Português (o que até é verdade, mas por razões que relevam de razões completamente diversas).
Embora a Lusofonia não seja somente nem sobretudo uma questão de língua, também a Comunidade dos Países e Povos de Língua Portuguesa deverá ser igualmente uma Comunidade dos Países e Povos da Língua Portuguesa, a qual, uma vez findos os tempos do colonialismo e na dinâmica da pertinente «crítica da razão lusófona», pode deixar de ser um instrumento de dominação para se tornar um instrumento de cooperação interlusófona e internacional.
Assim entendida, a Língua Portuguesa poderá e deverá tornar-se uma das grandes (senão a maior das) riquezas de todos os Países e Povos da CPLP e todo o investimento na sua cultura e difusão aparece como o investimento mais inteligente e mais rentável.
Por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, poderiam e deveriam mostrar era assegurar a existência de professores da Língua Portuguesa em todos os espaços do Espaço Lusófono e no máximo possível de espaços do mundo contemporâneo; por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados Lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, poderiam e deveriam mostrar, ultrapassando os ridículos preciosismos e provincianismos das guerras do alecrim e da manjerona das Academias e dos intelectuais de ambas as praças (portuguesa e brasileira), era assegurar o cumprimento de um «acordo ortográfico lusófono» (o agora proposto ou outro, mas que seja!), prova dos nove e condição “sine qua non” de qualquer lusofonia linguística, tanto no âmbito dos espaços lusófonos como fora deles.
Por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, poderiam e deveriam mostrar era assegurar a utilização da Língua Portuguesa em todos os lugares e encontros internacionais (políticos, turísticos e quaisquer outros!) e não permitir, sob nenhum pretexto, que uma das línguas mais faladas do mundo seja constantemente reduzida ao lugar e papel de uma língua insignificante.
E quando é que os Estados lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, darão um mínimo de vida e actividade ao (já defunto ou nunca vivo) Instituto Internacional de Língua Portuguesa e outras instituições do género? Nas palavras sentidas da actual Direcção da lutadora Sociedade da Língua Portuguesa, «porque é que a nossa língua, a sexta do mundo em número de populações, não é a sexta mais falada? Que políticas têm falhado?»
E bastaria dar exemplos grosseiramente caricatos como o seguinte: na cerimónia em que o então considerado melhor futebolista do mundo (Ronaldo, lusófono) recebeu do presidente da FIFA (João Havelange, lusófono), sob os olhares do considerado melhor futebolista de sempre (Pelé, lusófono), o respectivo prémio, alguém ouviu uma palavra em Português?
E que dizer quando, entrevistado em Paris, o luso futebolista Figo tentou exprimir-se em Espanhol, embora não ultrapassasse as fronteiras do ...”espanholês”? E como entender que o Brasil permita que os “media” internacionais digam sempre “Mercosur” e não Mercosul, embora seja ele o membro principal de tal organização?
E será que, a nível da América do Sul, as potencialidades estratégicas unitárias do “Português-Brasileiro” (que, além do resto, cumpre os citados requisitos que Fernando Pessoa exigia para que uma língua possa tornar-se uma «Língua Universal»: ser falada em todas as partes do mundo e... ser a língua de um «grande país»...) não conseguirão impor-se às debilidades múltiplas do “Espanhol-Sulamericano”, de modo que, num futuro mais ou menos breve, se venha a falar, em todas essas paragens, muito menos o “Portunhol” do que o “Espanholês” ou, melhor ainda, se venha a falar simplesmente o “Português-Brasileiro”?
A resposta negativa marcaria o momento da certidão de óbito e do “Adiós” à Lusofonia e ao «Brasil, País de Futuro». Quem não se respeita a si próprio não merece o respeito de quem quer que seja!
No recomeço, há apenas alguns dias, das suas actividades, a partir das instalações cedidas pela Universidade Lusófona, o Ciberdúvidas (que saúdo e a que auguro os maiores êxitos) publicou um emblemático texto de José Saramago, emblematicamente intitulado: «Uma Língua que não se defende, morre». Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça e quem tem olhos para ler, que leia!
3. Mas é enquanto projecto de geostratégia socioeconomico-política que a Lusofonia tem a sua primordial razão de ser, para realização própria de todos os Países e Povos Lusófonos e como contributo para a realização do “Fenómeno Humano” (inclusive, se quiserem, nas perspectivas cósmico-antropológicas e, neste sentido pleno, também evidentemente culturais, de Teilhard de Chardin).
Para a descoberta e a prática sadias e descomplexadas desta vertente geostratégica ou geopolítica da Lusofonia, essencial é o recurso permanente a uma Crítica da Razão Lusófona, a qual, à semelhança do que o filósofo Kant pretendeu fazer tanto para a «Razão Pura» como para a «Razão Prática», estabeleça as condições de legitimidade, de possibilidade, de necessidade e de urgência da construção da Lusofonia, que, também kantianamente, poderiam intitular-se de Prolegónemos a toda a Lusofonia Futura.
Aqui e agora, limitar-me-ei a alguns comentários breves sobre os casos da “Lusofonia” de Portugal, do Brasil e dos Países Lusófonos de África, não só por razões de tempo, mas também porque da parafernália mitológica luso-brasileira fazem parte esses dois indestrutíveis mitos que dão pelo nome do «passado glorioso de Portugal» e do não menos «glorioso futuro do Brasil» e porque, sem prejuízo do insubstituível lugar e papel dos outros Países e Povos Lusófonos, Portugal, Brasil e os Países Africanos têm de ser, nas presentes condições, os primeiros grandes motores da Lusofonia e serão os grandes responsáveis históricos do seu possível êxito e do seu não impossível fracasso (designada e desgraçadamente, as actuais classes dirigentes de Portugal e do Brasil parecem longe de estar ao nível deste desafio histórico).
Relativamente a Portugal e para além de um “imperial-saudosismo” ou de um “colonial-complexismo” que relevam mais da psicanálise que de qualquer análise económica ou política, há que ressaltar o nauseabundo provincianismo que desde há tempos venho chamando a «doença infantil do europeísmo ou a «concepção novo-riquista, pacóvia, discipular e schengeniana da integração europeia de Portugal, como se, por ser e para ser europeu, Portugal devesse deixar de ser luso e lusófono e como se até não fosse a Lusofonia o grande e específico peso de Portugal «na balança da Europa e do Mundo».
Com esta «doença infantil do europeísmo» ou esta «concepção novo-riquista, pacóvia, discipular e schengeniana da integração europeia de Portugal”» é perfeitamente compatível a «visão americano-atlantista e otaniana» do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, cuja “cegueira lusófona” tem sido à prova de todas as mudanças do respectivo titular e parece verdadeiramente configurar um triste “desígnio nacional”...
Relativamente ao Brasil, tem sido notória a insensibilidade para não dizer alergia lusófona generalizada de todas as elites, que não se dão conta de que, na geopolítica multipolar que se desenha e se deseja, a Lusofonia constitui “chance” única para o Brasil poder vir a ser alguém no concerto das grandes potências do século XXI. Não haverá ninguém que consiga abrir os olhos do Povo Brasileiro a este axioma tão óbvio como cheio de consequências: Sem Brasil não haverá Lusofonia, mas também sem Lusofonia não haverá Brasil, que valham a pena!?
Como, com alguma solenidade mas sem nenhum exagero e possivelmente também sem nenhum efeito, tive ocasião de dizer na maior metrópole lusófona do Mundo que é São Paulo, aquando das celebrações dos 500 anos do Brasil: «A Lusofonia ou será brasileira ou nunca será; o Brasil ou será lusófono ou nunca será! Como a Lusofonia ainda não foi brasileira e como o Brasil ainda não foi lusófono, nem uma nem outro ainda simplesmente foram nestes primeiros 500 anos. Aguardemos e votemos pelos próximos 500, para que, no século XXI, nem o Brasil nem a Lusofonia percam a sua oportunidade histórica!»
É também por todas estas razões que não me inibi de insistir, na referida Carta Aberta ao Presidente Lula, sobre o «reconhecimento do lugar e do papel únicos do Brasil em todo o processo desta “Lusofonia Ecuménica ou Universalista”» a qual, como já foi dito (e sem prejuízo de outros países e povos lusófonos, como, por exemplo, Angola, destinada a tornar-se uma nação de referência no Continente africano e possivelmente o mais lusófono de todos os países e povos de Língua Portuguesa) ou será prioritariamente brasileira ou nunca será, embora também o contrário seja verdadeiro: o Brasil, com a sua ainda adiada missão de grande potência no concerto das nações, ou será lusófono ou nunca será!
O Brasil, por ser e para ser o terceiro grande pilar autónomo do mundo ocidental, ao lado da União Europeia e dos Estados Unidos, não precisa de deixar de ser nem pode deixar de ser “brasileiro” e “lusófono”. Quando assumirá o Brasil plena consciência da sua força e da sua obrigação histórica de, enquanto grande potência potencial do século XXI, cumprir a sua missão não só de indispensável motor da Lusofonia mas também, e simultaneamente, de reequilibrador, a nível universal, juntamente com outras grandes potências como a Europa, a Rússia, a China e a Índia, dos mais que evidentes e trágicos usos e abusos da autodeclarada e heteroaceite única superpotência actual que são os Estados Unidos da América do Norte?
Relativamente aos países africanos, recordarei, por um lado, o provincianismo da não-resolução ou da reemergência de certos complexos (e não só os clássicos de Édipo) e, por outro lado, o provincianismo típico de certas elites globalmente desafricanizadas e eurocentradas, que apresentariam a síntese de todos os defeitos sem nenhuma das virtudes das elites ocidentais.
A Conferência de Berlim e a «Corrida de assalto das potências europeias à África» continuam sem dúvida a ser pecados originais e causas não ignoráveis das actuais e futuras desgraças do continente, como o imperialismo ou colonialismo foi o «último estádio do capitalismo» (Lenine “dixit”!), o neocolonialismo foi o «último estádio do imperialismo» (“dixit” Nkrumah!), o «ultracolonialista fascismo português» complicou tudo e nada resolveu (como experimentou com a própria morte Amílcar Cabral!), um certo Desenvolvimento e uma certa Cooperação e uma certa Lusofonia poderão ter sido ou querer ser o «último estádio do neocolonialismo», (“dixerunt alii”!) uma certa «Globalização contemporânea» poderá ser ou vir a ser o “último estádio” de todas estas explorações e alienações (“timent multi”!); mas nada justifica e nada desculpa certas catástrofes africanas actuais como nada justifica e nada desculpa o comportamento de certas elites africano-lusófonas. A Lusofonia aqui proclamada pretende ser uma nova via democrática dos Direitos Humanos e do desenvolvimento de todos os países africanos lusófonos, com o exemplo de Cabo Verde a apontar um caminho de dignidade.
Uma tal Lusofonia e um tal Espaço Lusófono em nada se opõem, antes pelo contrário, não só ao diálogo omnitotidimensional com os outros espaços humanos e geopolíticos do mundo contemporâneo como também, especificamente, aos reais ou eventuais processos em curso da “Mercosulização” ou até “Alcaização do Brasil” (desde que respeitando as “soberanias” de todos, Lula “dixit”!), da “Aliança Mercosul-União Europeia” (tão desejável, tão dificultada por Bruxelas e tão mal entendida por Lisboa!), da “Integração Europeia de Portugal” (desde que ultrapassando a referida «doença infantil» do novo luso-europeísmo), das várias “Integrações Regionais dos Países e Povos Africanos e Asiáticos de Língua Portuguesa”, de todas as “Aculturações das Diásporas de todos os Lusófonos” e da “Globalização Societal à Escala Planetária”, opondo-se, sim e frontalmente, à loucura terrorista” e à histeria antiterrorista que o dia 11 de Setembro de 2001 desencadeou nos Estados Unidos e na Humanidade e que, uma e outra, constituem, por razões diversas mas com possíveis idênticos resultados, sérias ameaças de regresso à barbárie, mediante o incumprimento ou o esquecimento da tão longa e tão difícil conquista que foram o Estado democrático de Direito e o primado do Direito Internacional sobre a força bruta, bem como da única e para todos (“terroristas”, “não-terroristas” e “antiterroristas”, incluindo qualquer potência ou superpotência de ontem, de hoje ou de amanhã) obrigatória “Carta Magna” da Civilização que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Só uma tal Lusofonia assim “linguística” e assim “geostratégica e geopolítica” poderá tornar-se a via real, senão única, de desenvolvimento humano sustentável e de legítima afirmação internacional de todos os Países e Povos de Língua Portuguesa, assim aparecendo também, segundo a formulação da tese inicialmente proposta que, «mais que projecto ou questão cultural, a Lusofonia é, obviamente, um projecto ou uma questão linguística e, embora talvez menos obviamente, também e até sobretudo um projecto ou uma questão de estratégia política».
«Q.E.D., quod erat demonstrandum», e que espero eu tenha conseguido demonstrar e, senão convencer, pelo menos fazer passar a minha convicção.