Introdução
O papel da escola na aquisição da linguagem escrita é sem dúvida muito importante, pois é sobretudo na escola que se adquire e se desenvolve as competências de uso desta variedade da linguagem verbal que é medida consoante a capacidade de a usar no cumprimento de tarefas específicas que a sociedade impõe.
A escrita, é na verdade, um objeto complexo que é afetado por fatores de natureza diversa. É tido como um conteúdo escolar que encerra uma maior dificuldade, a qual se traduz na menor capacidade, por parte dos alunos, de realizar tarefas que envolvem o uso desse tipo de linguagem. É certo que essa constatação não envolve única e exclusivamente alunos que estão em contextos linguísticos como o de Cabo Verde, mas é um problema que impõe uma séria reflexão a todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem e medidas cabíveis para a sua resolução da parte dos decisores.
Embora os alunos afirmem escrever constantemente, pois vivem num contexto em que o desenvolvimento tecnológico potencia essa atividade, os problemas parecem agudizar-se, paulatinamente, uma vez que esse contexto é tão diverso que a escrita assume um hibridismo português/cabo-verdiano que se afasta daquilo que a escola assume como norma.
Na verdade, é também importante perceber o tipo de representação que se tem da língua portuguesa para se proceder a uma análise mais concreta do real problema que existe em torno do ensino e aprendizagem da escrita no contexto de Cabo Verde.
É neste âmbito que se justifica uma reflexão sobre a representação sobre a língua portuguesa e as práticas de escrita. E, assim, pareceu-nos importante perceber se:
1- Há correlação entre o tipo de representação que o professor e o aluno têm sobre a língua portuguesa e o desenvolvimento da competência de escrita?
2- O tipo de representação que o professor tem sobre a língua afetará de alguma forma o aluno?
Com este trabalho, pretende-se atingir os seguintes objetivos:
1- Identificar o tipo de representação que os alunos e professores têm sobre a língua portuguesa.
2- Saber quantos textos os alunos escrevem por ano, que tipo de textos ou de que género e que tipo de atividade de correção realizam.
Assim, estruturamos o nosso trabalho em seis pontos: o 1.º trata a introdução; o 2.º, a contextualização sociolinguística, demonstrando o papel da língua cabo-verdiana e o da língua portuguesa; o 3.º aborda o ensino da escrita; o 4.º faz alusão aos documentos norteadores de ensino da escrita; o 5.º faz a apresentação e discussão dos resultados; e finalmente, o 6.º, que aponta as conclusões a que chegamos.
O ensino da escrita
A variedade dos métodos utilizados pelos professores deve-se muito à criatividade do próprio professor, que tendencialmente costuma reproduzir as práticas dos seus antigos professores. A seguir esta tendência, temos muitos desses professores nas escolas cabo-verdianas. Mesmo com formação pedagógica e conhecendo os diferentes métodos existentes dificilmente se escolhe quebrar a tradição.
Lembro-me que durante todo o ensino básico escrevi composições, mas sempre seguia o mesmo ritual: “Ó mamã, dá-me uma frase. Papá, preciso de uma frase…”. Qualquer pessoa que já tivesse feito uma composição na vida servia. E lá terminava o meu texto da mesma forma: “Eu gosto muito de (podia ser a vaca, o cão, a cabra, as férias, o Natal, as Cinzas…). O mesmo se pode dizer do início da composição que invariavelmente começava da mesma forma: “O cão/boi é um animal doméstico…”. Lá descrevia a utilidade do animal, o que é que dá, por exemplo, a vaca dá leite que serve para a nossa alimentação, pele para confecionar sapatos, cinto(...). Todos sabiam como se inicia e termina uma composição que tinha uma estrutura fixa.
Quanto à avaliação e o feedback, corrigiam-se os erros ortográficos que eram enumerados e a tarefa seguinte seria repetir a palavra três ou cinco vezes para não nos esquecermos da sua grafia. Já no liceu, escrevíamos sobretudo narrativas sobre as férias, a escola, a família e a avaliação também passava pelos erros, chamadas de atenção sobre as transferências da língua materna.
Volvidas mais de três décadas, eis que chega a vez de o meu primogénito, no 1.º ano, entrar em contacto com a escrita. Esse momento importante aconteceu a partir do 2.º trimestre, quando a professora começa a lhe pedir que escreva frases, em casa, diariamente, para se familiarizar com a escrita. Ele não escrevia a partir de um contexto específico. Devia pensar e escrever. Aquele ritual de todas as tardes também envolveu a irmã de 4 anos, que se especializou em arranjar frases para ajudar a terminar o trabalho mais cedo. É claro que muitas vezes ele repetia frases de dias anteriores porque achava que ninguém se lembrava delas e a irmã revelou-se uma especialista a ponto de lhe arranjar todas as frases antes de se sentar para escrever.
Efetivamente, podemos notar que pouca coisa se alterou em termos de práticas escolares. Os meus professores da primária estão todos reformados, mas o sistema de frases continua a vigorar. No ensino secundário, as práticas também não se alteraram muito e os programas nos dão conta de pouquíssimas atividades de escrita significativa.
É um facto que a transição do texto oral para o escrito não se efetua automaticamente, assim como a aprendizagem do código escrito não é algo que acontece de forma imediata, por isso, a ênfase deve ser dada ao processo. Por isso, para Inês Duarte (1996): “Propor aos alunos que escrevam sobre um tema e limitar-se a avaliar o produto final, como acontece em muitas atividades de escrita realizadas tanto fora da aula como em aula, faz com que o professor não tenha acesso ao processo da escrita e, mais grave ainda, que o aluno não ganhe grande consciência das várias fases desse processo” (pp.79-80).
E, no entender de Antunes (2003:54) citado por Dorneles (2012) “[…] elaborar um texto é uma tarefa cujo sucesso não se completa, simplesmente, pela codificação das idéias ou das informações, através de sinais gráficos. Ou seja, produzir um texto não é uma tarefa que implica apenas o ato de escrever. Não começa, portanto, quando tomamos nas mãos papel e lápis. Supõe, ao contrário, várias etapas, interdependentes e intercomplementares, que vão desde o planejamento, passando pela escrita propriamente, até o momento posterior da revisão e da escrita.” (p. 2)
A escrita não pode ser entendida como um produto acabado, por ser fundamentalmente um processo que passa por múltiplos problemas que precisam ser ultrapassados. E o professor tem um papel importante neste processo que envolve dificuldades como o que dizer e a forma de o dizer. Sendo, pois, necessária a explicitação de operações que envolvem a planificação que passa pela identificação de um tema (escrever o quê?), finalidade do texto (para quê?), destinatário (quem?), o género texto, seguido pela fase de inventariação de ideias que é feito por meio de lista simples ou categorização das ideias, depois organização das ideias num grupo associativo ou mapa de ideias, para se passar à elaboração do plano-guia para a produção, passando pela textualização ou redação propriamente dita, seguido da revisão que consiste numa releitura crítica, deteção de problemas e elaboração da versão final ou edição. Efetivamente, os alunos devem conhecer essas diferentes fases, aprender a percorrê-las todas, mesmo não sendo de forma linear.
A escrita não é, portanto, uma habilidade espontânea, como conversar. Na verdade, segundo Gouveia (2014) é “um sistema autónomo de funcionalidade complementar à oralidade, usado na cultura em razão de motivações e contextos que de secundário nada têm e que nada devem à oralidade.”(p. 3) Por isso, ao pedir que os alunos produzam textos, o professor não pode admitir transcrição do discurso oral para o escrito, nem uma estrutura fixa ou cristalizada. Antes, ele deve orientar e acompanhar esse processo. Pois, é preciso contrariar a prática que consiste numa atividade imposta aos alunos, tendo quase sempre o professor como o único destinatário, não constituindo preocupação a criação de uma situação real de comunicação e definição clara dos objetivos nem da situação de comunicação, valorizando aspetos superficiais como a ortografia, vocabulário, sintaxe, fazendo da atividade depender exclusivamente a avaliação do aluno.
Segundo Flora Azevedo (2000) “o escritor constrói os seus textos com trabalho e persistência; reflecte sobre a situação de comunicação, aponta ideias, faz esquemas, redige rascunhos, revê provas. Entretanto, relê, corrige e reformula repetidamente o que está a escrever. Ou seja, a correcção e a revisão são parte do processo de redacção.” (p. 48) Assim, podemos perceber que a escrita não é uma atividade fácil e leva o seu tempo. Portanto, a competência de escrita exige do professor mais do que um trabalho de mandar redigir e o pleno envolvimento dos alunos. Sendo necessário, analisar e desmontar com os alunos o conjunto de operações e processos implicados na sua realização quantas vezes forem precisas até o seu completo domínio.
Os documentos norteadores
Se olharmos para os documentos que regulam o processo de ensino-aprendizagem em Cabo Verde, podemos ter alguma ideia do trabalho desenvolvido também ao longo do Ensino Secundário.
Em termos de manuais adotados, o do 7.º é também o do 8.º ano de escolaridade, o do 9.º está mais virado para as variações linguísticas e para o 10.º, 11.º e 12.º não existem manuais. Estes três últimos anos funcionam à base de módulos que nem todos os professores conhecem ou têm. Na verdade, o documento norteador é o programa que também nem todos os professores conhecem como deviam. Realmente, o trabalho se faz a partir da planificação que varia em termos de regiões, ilhas e de escola para escola na mesma cidade ou ilha.
Entretanto, como a planificação é feita com base nos programas dos diferentes ciclos, vamos tomar como ponto de referência estes últimos.
Do 7.º ao 8.º ano as propostas atividades de escrita são as seguintes:
- Criação de um jornal da turma (impresso ou mural);
- Reconto em banda desenhada;
- Redação de lenda partindo: a) de elementos recolhidos sobre o seu país, b) da área vocabular de conto, c) de fábula ou conto conhecido modificando a natureza das personagens ou outros elementos, d) de orientações dadas e e) de um diferente ponto de vista;
- Redação de uma história a partir de um título;
- Composição de uma lenda/mito/parábola a partir de outras (pela supressão, alternância, acréscimo).
No programa do 7.º ano, experimental desde 2012, lê-se na pág. 64: “Constata-se através da experiência escolar que as actividades de leitura e escrita não são uma prática constante, apesar dos docentes em geral as considerarem como imprescindíveis para a aquisição de conhecimento. O aluno trabalha basicamente com manuais, aos quais dedica tão-somente uma leitura, que condicionam o supracitado aos referenciais dos autores e à reprodução automática das ideias captadas nos textos tomados como fins em si mesmos.”
Pois, está evidenciado a inconstância dessa prática no próprio programa, mas não se propõe o reforço. E entre o 7.º e 8.º as práticas são as mesmas.
Em relação ao programa do 9.º e 10.º, em termos de orientações pedagógico-didáticas, recomenda-se:
“Ao nível da escrita, é importante que o aluno se consciencialize que escrever bem implica escrever com clareza e correcção, por isso, antes de mais, deverá aprender a pensar e a planificar as suas produções escritas para, noutro momento, proceder à sua reescrita e ao seu aperfeiçoamento. Este aperfeiçoamento poderá ser um trabalho individual, de pares ou mesmo colectivo. Neste sentido, sugerimos que o professor promova actividades de reescrita na sala de aula, procurando envolver o aluno na detecção e resolução dos seus problemas e levando-o a reflectir e a reescrever aquilo que escreveu. O professor, por exemplo, depois de apreciar as produções dos alunos e de proceder às anotações necessárias com base no código de correcção e grelhas de observação da escrita, deverá entregá-las aos alunos para que as corrijam e as aperfeiçoem sob orientação do professor e recorrendo a materiais de consulta e suportes variados de correcção. De igual modo, o professor também deverá levar os alunos a encararem a escrita como uma forma de apropriação de técnicas e modelos, como uma forma lúdica, criativa, expressiva e crítica, promovendo a redacção de enunciados diversos na sala de aula e fora dela. Deste modo, o aluno poderá, mais tarde, em outros contextos, aplicar os seus saberes de forma eficaz.” (p. 6)
E as atividades de escrita para o 9.º são as seguintes:
- Produção de textos utilitários (relatório, ata, memorando), tendo em conta uma situação-problema;
-Exercícios de correção (auto e heterocorreção) dos textos produzidos pelos alunos, recorrendo a materiais e suportes variados de correção (guias de correção de produção escrita);
-Produção de folhetos informativos e de cartazes alusivos a uma das temáticas transversais propostas para exposição na escola em colaboração com a disciplina de D.P.S.; Construção da biobibliografia de um dos autores da lusofonia;
- Criação de um dicionário a partir da junção de várias palavras primitivas;
- Redação de textos expressivos e criativos a partir da análise e dos títulos dos textos literários recomendados;-Resumo escrito de um conto literário.
Relativamente ao 10.º ano de escolaridade, as atividades propostas são:
-Produção de textos lúdico-expressivos para inclusão no livro de turma (poesia visual ou criativa);
-Redação de textos de apreciação crítica em relação à mensagem transmitida nos poemas.
Já para o 3.º ciclo, na área de Humanística, na disciplina de Língua Portuguesa, no 11.º, propõem-se as seguintes atividades:
“Expressão escrita: O plano como primeiro passo. Pertinência. Adequação. Sequencialização. Coerência e coesão. A construção de textos a partir de textos: resumo de obra, resumo de relatório ou diploma legal, recensão de artigos da imprensa, fichas bibliográficas. Construção de artigos suscitados por acontecimentos ou temas em causa. Exigência Dominante de comunicabilidade. Expressão aberta dos pensamentos, dos sentimentos e das vivências do autor e da sua visão do mundo e da vida. Mas sempre reflexo do mundo exterior, com toques históricos e líricos.”
E no 12.º ano as propostas recaem sobre:
“A construção pessoal de textos utilitários. Relatórios de realização de acções e projectos. Estruturação e desenvolvimento. Crítica de leituras, de espectáculos, de programas de rádio e televisão, de exposições. A coluna regular de crítica.”
Já nas áreas de Económico e Social e Ciência e Tecnologia, a disciplina é Comunicação e Expressão e as diretrizes são:
“considerando que a verdadeira interacção verbal tem lugar dentro de um processo textual, os últimos pontos do programa convidam a uma reflexão sobre a noção de texto e sobre os princípios de textualidade, numa procura de estimular uma correcta produção linguística por parte dos alunos.” Acrescenta-se o seguinte: “Todo o programa previsto se concentra nos actos comunicativos, aqueles que exprimem a relação entre os falantes e as interacções sociais possíveis a partir do uso da língua. No 11.° ano, dar-se-á particular atenção aos seguintes: actos representativos; actos directivos; actos expressivos; os actos comissivos e os actos declarativos ou declarações.”
E quanto ao 12.º , as orientações são as seguintes:
“O programa previsto para o 12.º ano debruçar-se-á predominantemente sobre os “actos indirectos e sobre todas as situações de complexidade comunicativa (actos sociais e participativos, intenções voluntariamente ocultas, actos perlocutórios…). presentes nas situações mais elaboradas de comunicação linguística.”
Convém realçar que o programa da área de humanística é apresentado como:
“organizado em função de dois grandes núcleos de conteúdos: a) de Literatura de Língua Portuguesa; b) de Uso e Funcionamento da Língua. Os conteúdos de Literatura de Língua Portuguesa foram, por outro lado, organizados em 3 núcleos: a) Percursos da literatura cabo-verdiana; b) História da literatura portuguesa / Outras literaturas de língua portuguesa; c) Teoria literária. Teve-se naturalmente em conta que nos ciclos anteriores se procedeu a um estudo e uma prática exigentes e de acordo com as orientações programáticas respectivas. Importará, por isso, agora fundamentalmente reforçar ou complementar a aprendizagem adquirida.”
Na verdade, este olhar sobre o programa revela o que o sistema propõe e não se percebe ao certo a extensão do trabalho, agrupam-se 7º e 8º, mas não há uma evolução, os textos são os mesmos, depois, 9º e 10º mas sem grandes alterações nas propostas, e no último ciclo, volta-se ao início. Portanto, é tudo o que o aluno levará em termos de práticas de escrita que não tem qualquer ligação com a realidade a que estará sujeito na sua vida profissional ou académica.
Para se considerar que o escrevente tem competência na escrita, ele tem de saber mobilizar saberes necessários para planear, escrever e rever o seu texto de acordo com a tipologia ou género exigido. E adquirir tais capacidades implica todo um trabalho que é mediado pelo professor e um forte engajamento dos aprendentes.
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Flora. (2000). Estudar e Aprender a Escrever – Através e Para Além do Erro. Porto. Porto Editora.
GOUVEIA, Carlos. (2014). Compreensão leitora como base instrumental do ensino da produção escrita. In W. Rodrigues Silva, J. S. dos Santos e M. Araújo de Melo (Orgs.) Pesquisas em língua(gem) e demandas do ensino básico. São Paulo: Pontes editora.