...Mas, se êste título parecer demasiado pretensioso, poderemos substituí-lo por outro mais modesto e mais concreto: Andanças do adjectivo «bom» pelas bôcas e pelos tempos.
Se um estrangeiro nos perguntar à queima-roupa o que quere dizer a palavra «bom», é fácil respondermos-lhe que chamamos «bom» a tudo o que tem bondade, e «bons» às criaturas bondosas. Mas a coisa não é tão simples na língua portuguesa, e igual complicação se encontrará nas outras línguas com as palavras correspondentes.
Nas expressões «Bom Jesus, Deus é bom, boa gente», a palavra aparece com o seu primitivo e lídimo sentido de «bondade»; e o mesmo se dá quando dizemos: «Fulano é bom tipo», ou «bom homem». Se porém classificarmos de «bom ponto» um sujeito qualquer, a idéia de bondade já não predomina: referimo-nos assim quási sempre a alguém que procede por maneira sua, inesperada ou diversa das do comum das gentes. «Bom ponto» é o mesmo que «ratão», e ainda ninguém me explicou porque é que se chama assim rato grande a um «ratão» dêstes.
«Homens bons» não é o mesmo que «bons homens». Os homens bons podem não ser exemplos de bondade pròpriamente dita: as nossas leis designam assim aquêles que, em cada frèguesia ou município, tem as qualidades de seriedade, honestidade, experiência e critério, necessárias para que se lhes confie a direcção dos negócios administrativos locais.
Apanhar um susto não é coisa boa; no entanto dizemos: «Apanhei um bom susto», e isto significa ter sido grande, o susto, e nada bom no sentido próprio. Esta mesma idéia de grandeza expressa com o adjectivo «bom» está na frase corrente: «Daqui até lá é uma légua». Desta maneira a palavra «bom» funciona como puro aumentativo, sem nenhum sentido de qualidade ou virtude, mas sim de mera quantidade, como os adjectivos «bastante, grande, muito», etc. Isto se vê bem nestas expressões freqüentíssimas: «Custou-me bom dinheiro esta casa». «Boa parte dos seus haveres desapareceu na última crise». Para apanhar o prémio, o rapaz correu a bom correr». A esta mesma espécie pertencem os dizeres bem conhecidos: «Fulano é um bom copo», «Beltrano é bom garfo», aplicados a pessoas que «lhe» bebem ou comem bem, isto é: muito.
A cada passo empregamos o adjectivo «bom» para exprimir idéias, não de bondade moral, mas de eficácia prática ou apropriação a certos fins materiais: «Madeira boa para construcções». «Pano bom para lençóis». «Remédio bom para o reumatismo». «O que é bom para o ventre é mau para o dente», diz um provérbio.
Outras vezes a palavra «bom» exprime, não bondade, mas facilidade, como na expressão tão usada: «Isso é bom de dizer». Falamos assim para afirmar que é fácil arquitectar projectos, mas difícil pô-los em prática.» Essa é muito boa», quere dizer que achamos engraçada qualquer coisa que nos disseram: e «Boa vai ela!» exclama o povo para significar estranheza ou espanto», e não bondade pròpriamente.
«Boas contas» são na realidade «contas certas»; e «bom nome» é fama, não de bondade, mas de honestidade.
Em muitos casos aparece o «bom» como sinónimo de «feliz». Assim nas invocações religiosas, como «Bom Sucesso», que é o parto feliz: «Senhora da Boa Hora» ou «da Boa Morte», a quem se pede uma morte suave. O mesmo se dá com os nomes de igrejas ou capelas «do Bom Fim». «da Boa Viagem» ou «do Bom Despacho».
«Ano Bom, não quer dizer, pròpriamente, nem «ano», nem «bom». É um comprimido expressivo de certa idéia que, para se definir nítida e inteira, precisaria de muitas palavras. «Ano bom» significa, invocativa e propiciadoramente, o primeiro dia de um ano que começa e se deseja feliz.
Por ironia, às vezes feroz, o adjectivo «bom» pode levar consigo todos os venenos da maldade ou do ódio. «Se eu lhe puder ser bom, àquele maroto» !... é bem má promessa de algum sujeito que se quer vingar de outro.
Outras vezes não perde a palavra «bom» a sua originária significação de «bondade»; mas tinge-se de comiseração desdenhosa e cometemos então a maldade de troçar dos que são muito bons, ou bons de mais. Um «bom-serás», ou uma «boa-serás», são maneiras de falar aplicadas a pessoas demasiado pacientes, que não reagem às maldades de outrem, ou as perdoam fàcilmente, ou nem sequer dão por elas. No calão de agora chamam-se «troixas» a essas criaturas, e deu-se aqui um salto curioso nos últimos tempos, pois essa mesma palavra «troixa» a emprega Camilo com o sentido oposto, de «pulha», ou «trampolineiro». (Veja-se C. Figueiredo, «Dicionário»). Igual espírito de sorrir da bondade alheia se nota nos aumentativos caricaturais «bonachão», e «bonacheirão».
Outro aspecto da grande elasticidade da palavra «bom» resulta do parentesco do conceito de «bem», ou bem-estar, com o de «saúde». «Fulano está com bom parecer» e «Fulano já está bom» são expressões que nada têm que ver com a idéia de bondade, mas sim com o facto da conservação ou do restabelecimento da saúde.
Semelhantemente aparentadas, e desde longa data, na imaginativa inteligência humana, são as idéias de beleza e de bondade, as noções do Bom e do Belo. Tal parentesco vem desde as meditações dos filósofos antigos, ressurgiu com os pensadores e poetas do Renascimento, e continua perdurando.
A bondade é um dos aspectos da Perfeição e faz parte da Trindade em que o Belo e o Justo são parceiros. Lá está nas célebres redondilhas camonianas «Sôbolos rios que vão» o pensamento de que a beleza e o amor humanos não têm luz própria: são meros reflexos, ou simples sombras, da beleza, bondade e amor divinos:
Os olhos e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, nem da candeia,
É sombra daquela idéia
Que em Deus está mais perfeita.
E a beleza de certa mulher que apaixonou o Poeta é apenas uma partícula da perfeição de Deus:
E aquela humana figura
Que cá me pôde alterar
Não é quem se há-de buscar:
É raio de Formosura
Que só se deve amar...
Transportadas estas idéias do pensamento metafísico para a análise da nossa linguagem corrente, os resultados não se farão esperar. Assim, na expressão «boa mulher» apresenta-se-nos o ajectivo «bom» quási sempre com o seu sentido próprio, moral; mas «uma mulher boa» tem já significação em muitas bôcas masculinas: refere-se a qualquer mulher sexualmente apetitosa.
É da língua actual êste caso de sinonímia de «bom» e «belo»; mas a mistura dos dois significados vem de longe e cá se encontra no qualificativo «bonito». Todos usamos, e a cada passo, a palavra «bonito», sem sabermos ou notarmos que ela é um diminutivo de «bom». Etimològicamente, portanto, «uma bonita boazinha». Contudo sabemos bem que nem sempre a etimologia concorda com a psicologia, e que há meninas bonitas, capazes de ser muito màzinhas.
Ora, agora surge a ironia, ou vem o sarcasmo – e viram tudo do avêsso. «Bonito serviço»! ou: «Fizeste-la bonita»! são exclamações que se soltam, quando o caso está feio. E assim um «menino bonito» pode ser feio como os trovões. Para que exista, basta-lhe andar bem vestido e bem calçado à custa do pai já velho ou da mãe viúva, passar os dias na cama e as noites na pândega – e não fazer nada que preste.
E etc., etc., etc. O assunto não fica esgotado e o adjectivo «bom» ainda tem mais que se lhe diga. Mas é «bom» acabar, para não abusar, nem dos ouvintes mais «bonacheirões». Portanto, «boas noites», isto é: uma noite bem dormidinha, sem necessidade de narcóticos como êste.
Julho de 1939.
In Língua e má língua (Livraria Bertrand, 3.ª edição, 1945) de Agostinho de Campos. Manteve-se a grafia original.