« (...) Há 5000 anos, algures na Europa, uma criança dizia "*méh₂tēr"; o meu filho diz mãe, assim, com as três letrinhas apenas… As palavras mudam no tempo e no espaço, mas neste gesto de chamar a nossa mãe há qualquer coisa que nos une a todos. (...)»
Para começar, olhemos para o inglês. Podíamos ter começado por outra língua qualquer, mas esta é uma língua famosa, digamos assim… Não se preocupe: havemos de chegar à nossa, não sem antes viajar no tempo.
Hoje em dia os ingleses dizem mother, é verdade. Mas, há uns bons séculos, no tempo do Inglês Antigo, essa mother era mōdor, o que me soa a nome de reino da Terra Média.
Ora bem: há uns 1000 anos os ingleses diziam mōdor. E há 5000 anos? Bem, por essas alturas ingleses era coisa que não havia — e a escrita estava ainda a dar os primeiros passos, o que nos impede de saber como se dizia «mãe». No entanto, os linguistas, nos últimos 200 anos, através de complexas comparações entre línguas, descobriram que muitas línguas da Europa e da Ásia pertencem a uma só família: a família indo-europeia.
Ora, através dessas comparações, chegou-se a uma forma provável para a palavra mãe tal como seria dita nessa língua muito antiga: *méh₂tēr (o asterisco serve para mostrar que a palavra é uma reconstrução e o h₂ não é nenhuma fórmula química, mas antes uma forma de representar um certo som para o qual não temos nem letra nem certezas).
Essa palavrinha reconstruída deu origem à mother inglesa — mas não só. Deu origem à mâdar persa, por exemplo. Deu também origem à «mãe» grega (mitéra), russa (matʹ), letã (māte), irlandesa (máthair) e por aí fora. Curiosamente, deu também origem à motër albanesa, com a peculiaridade que, nessa língua, a palavra acabou por significar «irmã». Mistérios das línguas humanas…
Ah, pois! A tal língua indo-europeia desfez-se com o tempo. Lá pelo Norte da Europa, entre florestas antigas e alguma escuridão, transformou-se na guerreira mother inglesa, na carinhosa Mutter alemã, na abreviada mor sueca…
Pois, a mesma língua, mais a sul, deu origem à mater latina, que se foi transformando na mamă romena, na madre italiana e espanhola, na mère francesa, na mare catalã e, claro, na nossa palavrinha…
Chegámos, por fim, à nossa língua-mãe. A mater latina, neste canto da Europa, acabou por se tornar nesta palavra toda ela nasal, feita do inevitável «m» e, depois, do ditongo «ãe», que aflige os estrangeiros interessados em falar português. Quem não sabe, tem de aprender a controlar a saída do ar pelo nariz — nós fazemos isso sem dificuldade, mas peçam lá a um inglês para dizer «mãe» e verão como é difícil dizer as vogais nasais. Temos uma língua muito senhora do seu nariz, é o que é.
Ah, mas a palavra, mesmo dentro da nossa língua, muda. Já se escreveu mãy (e não só). Dizemos mãe, mas também mamã, mãezinha e todas as outras formas que multiplicam o carinho e o amor pela mãe. A mesma palavra, quando se ouve na boca dum filho a chamar a mãe ao longe, transforma-se noutra coisa: numa «mã-iiiiihn».
Ainda não acabou a viagem. Mesmo por cima de nós, temos a nai ou a mai galegas, a mostrar que as nossas palavras andam sempre ali na vizinhança das palavras dos vizinhos do Norte — e, como as línguas não param, a mesma mai aparece no cabo-verdiano, uma língua que nasceu do nosso português, continuando o mesmo eterno processo que nos trouxe até aqui a partir da tal palavra antiga que se dizia há 5000 anos — e que já vinha de outras palavras mais antigas, que já não conseguimos reconstruir, que o tempo apaga tudo, até as palavras mais bonitas.
Não importa. Há 5000 anos, algures na Europa, uma criança dizia *méh₂tēr; o meu filho diz mãe, assim, com as três letrinhas apenas… As palavras mudam no tempo e no espaço, mas neste gesto de chamar a nossa mãe há qualquer coisa que nos une a todos.
Se o leitor não se importar, acabo esta viagem no tempo a dar um beijinho à minha mãe — e a todas as mães, em todas as línguas do mundo.
N.E. — A imagem que serve de ilustração é do origina.l Trata-se de um mapa simplificado das línguas indo-europeias –criado por Ilídio J. B. Vasco para o livro Almanaque da Língua Portuguesa – com base na palavra mãe e com um exemplo de língua por cada grupo. O percurso da palavra do proto-indo-europeu até ao português está sublinhado.
Texto transcrito, com a devida vénia, do blogue do autor, Certas Palavras – baseado em crónica escrita para o SAPO 24 em 2018. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.