«[Em Angola, o português] é apenas língua oficial, não sendo considerada como nacional, por causa da sua origem.»
A nossa língua nem sempre foi como a vemos hoje, pois teve de passar por várias transformações. Cada uma destas tranformações tem na base uma história tanto linguística como extralinguística, e, portanto, não se pode resumir a história do português no estudo das palavras, porquanto a língua é cultura. Dividimos a nossa análise em sete pontos, atenta a leitura:
1. Há mais de 800 anos teria surgido a língua portuguesa na Península Ibérica, uma língua que deve a sua origem ao latim vulgar e as várias outras línguas dos povos autóctones desta região da Europa. Por esta razão é que, até nos dias de hoje, uma boa parte do léxico português tem a sua origem no latim, permitindo a continuidade da relação de familiaridade com outras línguas, como o castelhano, o italiano, o francês, o provençal, o romeno, etc., as ditas línguas novilatinas. Estas línguas são tão próximas que nalguns casos é possível fazer uma correspondência sem grandes alterações, veja-se o caso da palavra latina fraternitate(m) que deu fraternidade (português), fraternidad (espanhol), fraternità (italiano), fraternité, (francês), fraternitate, (romeno) – e como esta temos outras várias palavras que navegam livremente entre estes sistemas linguísticos, o que permite às vezes dispensar a tradução entre os falantes;
2. Normalmente, estas palavras que nos chegaram do latim vulgar sofreram um conjunto de tranformações fonéticas que chamamos de metaplasmos, e o mais curioso é que em tais palavras, em muitos casos, a transformação foi acompanhada pela evolução semântica. O nome mancebo, por exemplo, deriva do latim manus caeptus, significando literalmente «capturado à mão», referente aos jovens soldados que eram capturados nas invasões dos romanos em territórios distintos; no entanto, a mesma palavra vai dar a mancebia, significando o estado de quem mantém uma relação amorosa extraconjugal ou vive maritalmente, sem estar casado; outro exemplo seria a palavra relógio que vem do latim horologium, do grego horologion, significando «quadrante solar para marcar o tempo», de hora, «estação, qualquer divisão de tempo, momento, hora». Nos três casos, podemos ver que houve transformações fonéticas para chegar a forma actual;
3. A invasão dos romanos a Península Ibérica foi no século III a. C., precisamente, em 218, o que permitiu a língua latina entrar em contacto com várias línguas e dialetos falados na região ibérica naquela época, sofrendo muitas modificações até formar a língua portuguesa. Já no século IV a.C, em 409, a região ibérica foi invadida por outros povos como os Alanos, Suevos,Vândalos e os Visigodos que naturalmente contribuíram também na formação do português, no entanto, em 711, com a invasão mulçumana na Península Ibérica, o português ganhou igualmente um conjunto de vocabulário que até hoje perduram. O árabe é, provavelmente, a segunda língua com maior influência lexical na língua portuguesa, porque diferente da invasão dos povos germánicos, a árabe teve maior tempo de duração, cerca de 4 séculos de ocupação mulçumana. Veja-se o caso de palavras como oxalá que vem de in shalah, significando «queira Deus», ou ainda a palavra assassino de hassassino ou haxixe originalmente significando «maconha». Segue-se o caso de açoite, arroz, xadrez, xarope, armazém, masmorra, algarismo, açúcar, algarve, etc., ao longo destas invasões ainda o português não era oficial no Reino de Portugal, o que veio a acontecer apenas com Dom Dinis em 1290, século XIII. Outro grande contributo nos primódios da nossa língua é a publicação da obra Os Lusíadas, em 1572, uma epopeia escrita por Luís Vaz de Camões, que retrata os feitos dos lusitanos na época dos “descobrimentos”;
4. No século XV, os portugueses iniciaram a época dos “descobrimentos” e, em 1482, o navegador português Diogo Cão chegou à foz do rio Congo ou Zaire, começando as primeiras relações com o Reino do Congo. A partir daí o português entrou em contacto com as línguas bantu com as quais mantém, na hodiernidade, relação de adstrato, embora o português possua uma posição de certo privilégio nesta relação. Com esta relação, a nossa língua sofreu um conjunto de transformações a nível fonológico, sintático, morfológico e semântico, as línguas nacionais contribuíram grandemente no desenvolvimento do português que temos hoje, onde se originam palavras como bué, cota, caçula, ginga, moleque, dendê, Macumba, etc., em África, é falada em cinco países, denominados «Países Africanos de Língua Portuguesa» (PALOP), nomeadamente, Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe e, nos últimos tempos, Guiné Equatorial. No caso de Angola, é oficial desde a primeira República, ela achou sumidade no território angolano por este ser constituído por diferentes povos, fazendo-se de veicular para permitir a unidade nacional. Enquanto que, em 1500, Pedro Álvaro Cabral, outro navegador português, chegou ao Brasil que seria durante três séculos a joia da Coroa Portuguesa, até chegar o 7 de Setembro de 1822. Hoje por hoje, o Brasil possui o maior número de falantes da nossa língua. Ademais, tal como em África, a nossa língua entrou em contacto com as línguas indígenas como o tupi-guarani de onde surgiu um conjunto de palavras, como mandioca, por exemplo;
5. Ela não ficou apenas em África e América, chegou também na Ásia, em regiões como China (Macau), Índia (Goa) e Timor-Leste. Segundo o Instituto Camões, 260 milhões de pessoas (3,7% da população mundial) falam o idioma, o quarto mais usado, depois do mandarim, inglês e espanhol. Refira-se ainda que neste contacto o português deu origem a crioulos como o caboverdiano, santomense e o guinense;
6. No nosso caso específico [Angola], este idioma é apenas língua oficial, não sendo considerada como nacional, por causa da sua origem. Entretanto, pensamos que esta língua é tão nossa como de Portugal, pois dos seus oito séculos de idade, cinco passou em nosso território, por isso é o português também uma língua angolana;
7. A nossa língua é a pátria de muitos escritores como Dom Dinis, o rei lavrador, Gil Vicente, Luis de Camões, Sá Carneiro, Bocage, Antero de Quental, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Fernando Pessoa, José Saramago, Jorge Amado, Carolina Maria de Jesus, Gonçalves Dias, Carlos Drumond, Mário Andrade, António Jacinto, Lara Filho, Ondjaki, Paulina Chiziane, Mia Couto, Pepetela e outros. É a casa de todos estes deuses que pelo seu dom de lapidar palavras conquistaram um lugar no Olimpo da nossa língua, como imortais, exigindo o conhecimento dela por meio da leitura até para aqueles que não são falantes maternos dela. Já dizia Pessoa: «minha pátria é a língua portuguesa».
Texto publicado no jornal angolano O País em 5 de maio de 2023.