Ao folhear uns cartapácios poeirentos que encontrei no sótão, deparei com um dicionário de língua portuguesa dedicado aos verbos eruditos.
Abri ao calhas e os meus olhos foram parar ao verbo mais curto. Era um verbo chamado pôr. Comecei a ler a definição e fiquei estupefacto: sem querer, eu tinha achado uma bela alternativa ao nosso verbo universal meter.
Qual revelação divina, comecei a adivinhar os usos que lhe podia dar. Em vez de dizer “mete os talheres na mesa” poderia, só para variar, nem que fosse por uma questão de elegância, dizer «põe os talheres na mesa». A certa altura – terá sido um vão delírio? – até imaginei que este diminuto verbo poderia servir para distinguir formas diferentes de colocação.
Que tal, por exemplo, se meter servisse para designar o movimento de introduzir qualquer coisa noutra coisa? Diríamos «meter uma chave na porta» quando a chave entrasse mesmo dentro da porta – e reservaríamos «pôr a chave na porta» para quando se deitasse a chave por cima da porta.
Até aposto que pôr poderia servir para quem está farto de usar meter. Mesmo nos maiores paroxismos eróticos há espíritos requintados que hesitam em gritar «mete agora!» e que mais folgariam em murmurar educadamente «põe agora, se não te importas».
Para meter os talheres na mesa seriam necessárias várias ferramentas para abrir o buraco onde pudesse caber. Já pôr os talheres na mesa poderia ser feito com a maior das distrações. Mas ninguém queria saber do verbo pôr. Disseram-me «Meter dá para tudo, irmão. Não te apoquentes mais».
Crónica de Miguel Esteves Cardoso para o jornal Público, em 27 de julho de 2019, com o título "Um novo verbo". Manteve-se a norma seguida no diário português, anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.