« (...) Aumentar a expressividade", eis o grande motivo: na tentativa de turbinar o discurso, empregamos repetidamente palavras que consideramos robustas, poderosas, mesmo que o contexto não seja lá muito compatível com seu sentido original. (...) »
Palavras de significado muito amplo costumam ser inimigas da precisão, pois frequentemente não oferecem ao leitor sentido bem delineado dentro do contexto. Elas transmitem ideia ampla e, por isso, seus contornos pouco definidos podem deixar a mensagem capenga.
Mas de onde vem isso? Qual seria a explicação para uma palavra como ter, por exemplo, ser tão imensamente polissêmica (no dicionário Michaelis, são 46 entradas e 18 expressões formalmente registradas com sua presença)?
O linguista Guy Deutscher explica:
«[...] a deterioração do significado não parece se originar de nenhum desejo indolente de economia de esforços, mas pelo seu quase exato oposto: o desejo de aumentar a expressividade. Os falantes às vezes se empenham bastante para intensificar o efeito de seus enunciados, para dar mais força e ênfase às suas falas, e ao fazer isso eles tendem a usar, a cada vez, palavras com significados mais robustos. A curto prazo, esse método pode atingir objetivos almejados, porém, a longo prazo, a estratégia é autodestrutiva, simplesmente porque ela é inflacionária. [...] A força do significado de uma palavra particular depende de sua distintividade, de modo que, quanto mais ouvimos uma palavra, e em contextos cada vez menos específicos, menos poderosa é a impressão que ela causará.»
«Aumentar a expressividade», eis o grande motivo: na tentativa de turbinar o discurso, empregamos repetidamente palavras que consideramos robustas, poderosas, mesmo que o contexto não seja lá muito compatível com seu sentido original.
É por tal razão, por exemplo, que uma palavra como literalmente tem ganhado exponencial aumento de significado, deixando de designar apenas «em sentido literal» (ou seja: «ao pé da letra») e se tornando um intensificador de sentido geral. Exemplo: «O ar estava tão frio, que eu literalmente morri congelado ontem.» Evidentemente, o sujeito não morreu de frio no sentido literal, do contrário estaríamos falando com seu fantasma. É apenas um jeito enfático de contar quão frio estava o ar. Literalmente equivale a um já hiperbólico quase, mas quase passa longe do drama shakespeariano obtido com “literalmente”.
Também com a mesma boa intenção, volta e meia tomamos empréstimos do inglês, numa tradução literal com o objetivo de tonificar o discurso. Só que não raramente são falsos os cognatos emprestados, o que nos gera a maior confusão.
Tem-se empregado aplicar, por exemplo, numa tradução estranhamente literal de to apply, quando poderíamos dispor do utilíssimo candidatar-se em contextos como «eu me candidatei a tal cargo». «Eu apliquei a tal cargo» parece invocar mais a ideia de dar uma bela injeção no cargo do que a de desejar preenchê-lo.
Realizar é outro: numa tradução literal demais de to realize – que significa «perceber» em português –, tem-se dito frases como «Eu não realizei que fulano já havia entrado na sala» em vez de «Eu não percebi» ou «Eu não me dei conta». O motivo é que, em inglês, to realize significa exatamente «dar-se conta». Ora, realiza-se uma obra, um sonho – é assim que conhecemos bem o verbo. De toda forma, um ou outro dicionário atento já realizou a ocorrência do fenômeno e realizou seu registro.
Fato é: a linguagem verbal, que poderia ser um meio para obter diagnósticos precisos e acordos entre os homens, acaba fazendo de um idioma só uma verdadeira Babel.
Como disse Deutscher, «a longo prazo, a estratégia é autodestrutiva, simplesmente porque ela é inflacionária». Querendo causar grande impressão, vamos gastando as palavras, arregaçando seu tecido para que cubra mais do que nasceu para cobrir.
O mais interessante é notar que o referido fenômeno está longe, longe de ser novo: em todos os tempos, em todos os lugares de que se tem notícia, nosso cérebro funciona assim. É provável que este próprio texto tenha várias palavras com significado outrora bem mais estreito. Somos naturalmente inflacionários, babélicos em nossa comunicação e, ainda assim, nos entendemos. Ou quem sabe não seja precisamente por isso? Mistérios...
Reflexão da advogada e professora de Português brasileira Lara Lara Brenner, publicada no mural Língua e Tradição (Facebook), em 27 de fevereiro de 2023.