«A forma como esses documentos são aceites em outro país, em um país alienígena, em um país terceiro, isso é que tem de ser checado1.»
Now, 13 de setembro de 2024, 21h24.
O designado caso das gémeas luso-brasileiras – duas crianças que sofrem de atrofia muscular espinal e que receberam em Portugal o tratamento com o Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo, com um custo de quatro milhões de euros – teve alguns desenvolvimentos recentes. A mãe das crianças, Daniela Martins, colocou uma ação judicial contra a Assembleia da República de Portugal devido à forma, alegadamente irregular, como alguns documentos chegaram aos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito. Sobre este assunto, o advogado da mãe das gémeas, Wilson Bicalho, foi ao canal de televisão português Now e, referindo-se a Portugal, usou a expressão «país alienígena», com o sentido de país estrangeiro, como se pode ler na frase acima transcrita.
Ora, em Portugal, a expressão «país alienígena» não é comummente usada para referir um país estrangeiro. O termo alienígena é apenas usado para referir extraterrestres ou seres de outro planeta. Tanto quanto nos parece esta forma, com este sentido, também não é comum no Brasil. Porém, no jargão jurídico brasileiro, ela é, de facto, usada com frequência para referir um «país estrangeiro», tal como se vê, por exemplo, nestes dois casos:
«Segundo Maria Helena Diniz (2008), a imunidade de jurisdição diz respeito à possibilidade ou não de um Estado alienígena ser parte em um processo judicial perante o Judiciário local ("Imunidades do Estado", Jusbrasil).
«A pesquisa de leis alienígenas ainda teve como referência as normas de Portugal e da Espanha […]» ("Lei 8078 de 1990, inovação da Constituição de 1988 e resultado de esforços comparatistas", Jusbrasil).
Apesar de hoje não ter curso no português comum, quer em Portugal quer no Brasil, e apenas ser usada no socioleto jurídico brasileiro, o certo é que a mesma está corretíssima, como a consulta a qualquer dicionário o demonstra. O Priberam atesta-o com clareza, sendo até esse o primeiro sentido:
«1. Que ou quem é de outro país. = ESTRANGEIRO, FORASTEIRO ≠ AUTÓCTONE, INDÍGENA, NATIVO.»
A Infopédia corrobora:
«1. que ou pessoa que é natural de outro país ou de outro lugar; estrangeiro, forasteiro.»
E vai até mais longe, dando o sentido hoje mais comum como figurado:
«2. figurado que ou pessoa que pertence a outro planeta; extraterrestre.»
O que também coloca a questão da (des)atualização de alguns verbetes, mesmo de dicionários online…
A etimologia é também clara a este respeito, alienígena provém do latim alienigĕna-, ou seja, «nascido noutra terra». O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, refere taxativamente que alienígena «opõe-se a indígena», o que estabelece com clareza o antagonismo semântico e nos faz de imediato perceber que, se usamos indígena para qualificar o local, é natural que usemos alienígena para caracterizar o forasteiro, sendo que, a nível nacional, um forasteiro é um estrangeiro. A que acresce a similitude da formação etimológica de ambos os termos.
Apesar de não serem muito abundantes, existem referências, mais recentes ou históricas, a alienígena no sentido de «estrangeiro».
O Padre Manuel Bernardes usou o termo no século XVII:
«Salomão depravado depois de velho pelas mulheres alienígenas» (Nova Floresta, I, 317).
Muito mais recentemente, a romancista Dinah Silveira de Queiroz também a usa:
«Eu digo as famílias, porque a rapaziada ia e vibrava. Pelo menos foi o que escreveu um jornalzinho não sei de onde, reclamando porque a elite local não prestigiava as legítimas manifestações da arte brasileira e só dava preferência à arte alienígena» (A Muralha, 1954).
Ainda que com um pé na linguagem forense, o escritor Caio de Freitas também refere:
«os governos procuraram dificultar a entrada de estrangeiros, apertando […] os molhos de uma legislação complicada, criada com a finalidade de preservar o país contra a horda de alienígenos» (Um Canal Separa o Mundo. Lisboa: Livros do Brasil, 1953, p. 33)
Usada no passado com o sentido de «estrangeiro», a expressão alienígena com esse significado caiu completamente em desuso, subsistindo ainda com esse valor facial e neutro na linguagem forense brasileira, como Wilson Bicalho nos veio recordar há dias. A tal poderá não ser alheio o crescimento da literatura e do cinema de ficção científica, que poderá ter ajudado a cristalizar o seu uso apenas na referência a seres de outros planetas...
A palavra ganhou com o tempo, no seu sentido mais comum, um claro valor negativo, sendo remetida apenas para caracterizar o dissemelhante e estranho, ou seja, o extraterrestre, o não humano, e não o semelhante, ainda que de outro lugar. Aliás, mesmo o seu antónimo indígena, usado para caracterizar os nativos de um lugar, parece servir hoje quase só para identificar os chamados povos originários, que habitavam os territórios antes da colonização europeia, e que ainda mantêm uma clara pertença, presença e individualidade étnicas. Aliás, apesar de se celebrar, a 9 de agosto, o Dia Internacional dos Povos Indígenas do Mundo, e no Brasil, a 19 de abril, o Dia dos Povos Indígenas do Brasil, que, em 2022, substituiu o Dia do Índio, expressões como «povos indígenas» parece estar a perder curso para a expressão «povos originários».
1 A frase original começa com «A forma que [sic]» que corrigimos para «A forma como […]».
Registo vídeo da sequência em que ocorre o uso da palavra alienígena no programa mencionado no texto: