Crónica do escritor português Miguel Esteves Cardoso à volta de um processo fonético típico do português de Portugal – a redução das vogais átonas –, que no falar de Lisboa é levado ao extremo, a ponto os falantes elidirem sílabas.
Tal como todos os lisboetas sou um papa-sílabas de primeira. Em Lisboa os grandes mestres da logofagia vivem na freguesia de Alcântara, em cujas ruelas dão lições de borla: basta dar-lhes uma rápida buzinadela.
As minhas filhas Sara e Tristana pôem-me iscos verbais para eu falar à fadista e, quando falo, desatam a rir e a imitar-me, implorando-me para «dizer lá outra vez».
São elas que me apanham a dizer, em vez de «não faz mal», «"fá" mal». Não sei o que é que acontece ao não. Deve estar implícito ou subentendido ou lá o que é.
O z de faz também é misterioso. Se as palavras «se faz favor» saem "fachavôr" porque é que não dizemos "fachemal"? Não fachentido.
Em Coimbra, quando têm sódad'je dizem que têm saudades e pronunciam quatro longas sílabas, como se a palavra saúde pudesse fazer parte do sentimento doentio mas delicioso que é a saudade.
Aqui em Lisboa diz-se, com todo o respeito, m'lher, com a última sílaba muito carregada. «Ah pois não» tem, para nós, um ésse a mais: ápoi'não é a pronúncia correcta, embora se admita a variante mais lacónica, poi'não.
A palavra mesma rima com lesma em quase todo o país. Aqui não. Aqui é mema e rima com lema. Mais uma vez ninguém sabe o que aconteceu ao ésse.
Também inventamos sílabas tónicas que não lembram ao diabo. Na capital portuguesa quem gosta de se esticar como os gatos tem forçosamente de se espreguiçar comósgatos. O acento sobre o segundo ó exige que se abra o á seguinte, não vá a gente fechar escusadamente a boca.