« (...) Tenho saudades das receitas escritas pela mão dos médicos, à nossa frente, com uma boa caneta de tinta permanente. E mais: acho que a caligrafia dos médicos tem um efeito curativo. (...)»
Nunca me hei-de habituar à assombrosa facilidade com que se recebe uma receita médica no telemóvel, pronta para mostrar na farmácia nesse mesmo segundo.
É a mesma coisa com os multibancos. Lembro-me das viagens e das horas necessárias para ir receber cheques que era preciso levar para vários bancos, onde se faziam filas para receber uma chapa que levava uma eternidade a chamar. O mais triste é que, mesmo assim, tenho preguiça de ir ao multibanco. O ser humano adapta-se a tudo – isto é, esquece-se de tudo – e é infinitamente capaz de transformar tudo em canseiras.
Pensar-se-ia que a facilidade de levantar dinheiro levar-nos-ia a reconhecer os progressos que se fizeram. Mas não. Só nos faz espumar da boca pelo facto de ainda haver assassinos do nosso tempo que se recusam a aceitar os nossos cartões. Nós não somos complicados, somos complicadores. E nisso somos desinteressantemente simples: complicamos tudo.
Veja-se só, neste contexto, a saudade que tenho: tenho saudades das receitas escritas pela mão dos médicos, à nossa frente, com uma boa caneta de tinta permanente. E mais: acho que a caligrafia dos médicos tem um efeito curativo. Não é preciso metermo-nos pelos caminhos da grafologia. A decifração da letra dos médicos era mais do que uma piada de farmacêutico: era, ela própria, terapêutica.
Tenho saudades da médica a hesitar, de caneta em punho, fazendo mais uma pergunta antes de começar a traçar o nome da poção mágica. Sentia-se a cabeça dela a pensar, antes do momento definitivo.
Dava gosto ver os médicos a escrever. Não era por acaso que tantos médicos eram escritores: a escrita também é uma ginástica e, de tanto lançar a mão, ela vai-se habituando a correr com a tinta.
Mas pronto, fica a memória.
Crónica do autor, no jornal "Público" do dia 30 de agosto de 2021. Manteve-se a grafia original, segundo a norma de 1945.